segunda-feira, 7 de maio de 2012

1º de outubro de 1980



As chamas da guerra no golfo Pérsico



Liberando velhos ódios, Irã e Iraque desatam um conflito em que todos podem perder
Para grande surpresa do Irã, o "Grande Satã" tantas vezes vislumbrado pela revolução islâmica do aiatolá Khomeini acabou se materializando no golfo Pérsico na semana passada. Ele veio acompanhado de um séquito de tanques, tropas, aviões de combate e navios de guerra, e com as piores intenções possíveis: derrotar militarmente o regime dos turbantes instalado em Teerã e sagrar-se guardião da região que fornece quase 60% do petróleo de todo o ocidente. Só que o "Grande Satã" não apareceu com a cara que Khomeini garantia - pois, ao contrário de suas visões, não foram os Estados Unidos o ímpio invasor e, sim, o vizinho Iraque do aguerrido presidente Saddarn Hussein. Pouco importa. Para Ruhollah Khomeini, cujo país começou a ser bombardeado na segunda-feira passada, "há um demônio que ameaça nossa revolução". Ao mesmo tempo, na sexta-feira, ele próprio tinha de assegurar que estava vivo, pois a Rádio de Bagdá anunciava sua "chegada ao inferno".
Ninguém sabe com precisão quando nem onde começou essa guerra. Escaramuças e choques de fronteira entre os dois países sempre foram freqüentes, motivados por uma secular lista de rivalidades, contenciosos territoriais e, mais recentemente, disputas ideológicas. Se alguém se der o trabalho de inventariar, é até possível que a primeira vítima dessã guerra tenha sido um anônimo marinheiro japonês ferido na manhã de segunda-feira quando seu neutro petroleiro "Camilla" passava, com três outros navios, pelo disputado estuário de Shatt al Arab - e foi atingido pela artilharia iraniana por estar envergando a bandeira do Iraque.
Em todo o caso, foi em resposta a essa agressão localizada que o Iraque se desinibiu militarmente e desencadeou o ato inicial da guerra aberta contra seu grande rival: numa operação fulminante, um comando de caça-bombardeiros Mig, de fabricação soviética, espalhou-se pelos céus do Irã e passou a atacar simultaneamente dez bases aéreas inimigas, inclusive o aeroporto de Mehrabad, em Teerã. Com essa blitz, o alto comando iraquiano calculava inutilizar de um golpe só todo o poderio aéreo do Irã e assim repetir o feito arrasador de Israel que, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, imobilizou no solo a aviação do Egito, abrindo as portas para uma vitória geral.
PREÇO REAL - Não foi bem assim. Até o final da semana, aviões iranianos Phantom, de fabricação americana, continuavam decolando de bases no Irã para infligir pesados danos a cidades e alvos industriais do inimigo, inclusive a capital, Bagdá. Também as tropas e os tanques do Iraque, que no segundo dia da guerra irromperam ao longo de toda a fronteira ocupando uma faixa de 20 a 80 quilômetros de território do Irã, encontraram uma resistência inesperada de um Exército que se pensava desmantelado depois dos três primeiros dias de guerra - conseqüência inevitável do delirante processo de desorganização, expurgos e desmoralização que vem sofrendo desde a queda do ex-xá Mohammed Reza Pahlevi.
Até a manhã de sábado, a vantagem militar continuava sendo do Iraque, mas o preço real da guerra era alarmante para o mundo inteiro: pela primeira vez, desde o boicote árabe de 1973, a produção de petróleo do Oriente Médio era paralisada bem em seu coração. Refinarias inteiras, complexos petroquímicos, terminais petrolíferos, poços de produção e oleodutos ardiam em chamas nos dois países em guerra, inutilizados. Embora duramente golpeado, o Irã conseguira atingir a jugular econômica de seu agressor, obrigando o Iraque a suspender por completo suas exportações de petróleo. Não era pouca coisa. O Iraque é o quarto produtor e o segundo exportador de petróleo do mundo, com mais de 3 milhões de barris diários, e, junto com o Irã, opera quase 20% das vendas de combustível de toda a OPEP. Tudo isso seria um tanto remoto e abstrato para o Brasil se o governo brasileiro não comprasse ali 400 000 barris diários, algo como metade de suas importações e mais de um terço de todo seu consumo - situação compartilhada por países como a França, Itália e Japão, que se abastecem em mais de 50% de suas necessidades petrolíferas no mercado iraquiano. Pela primeira vez, na recheada história das guerras no Oriente Médio, uma delas passava a ter reverberações sensíveis no Brasil.
Também pela primeira vez, um conflito de tão grandes proporções na região seguia uma trajetória própria, sem possibilidade decisiva de mediação ou influência das grandes potências. Com isso embaralhava-se por completo o tradicional jogo de alianças automáticas. Afora a constatação genérica de que tanto o bloco comunista quanto o ocidente receberam com satisfação variada a notícia de uma guerra contra o país do aiatolá Khomeini - inegavelmente, um dos regimes mais detestáveis, incômodos e criadores de caso que o mundo contemporâneo já conheceu -, era difícil precisar posições entre a hesitante comunidade internacional. Muitos países, entre eles Israel, não sabiam sequer com segurança de que lado estavam seus interesses reais e pela vitória de quem deveriam torcer. Outros tantos, perenemente aterrorizados com tudo quanto diga respeito a petróleo, reagiram por reflexo condicionado - correndo a declarar sua neutralidade antes mesmo de saber direito o que estava acontecendo.
AMADORISMO - De qualquer forma, ninguém se arriscaria a apostar tudo numa vitória arrasadora de uma das partes. Embora Iraque e Irã tenham gastado a maior parte de seus petrodólares na aquisição de imponentes arsenais bélicos, nenhum dos dois países havia testado suas Forças Armadas numa guerra total - em ambos os casos, a força militar costumava ser empregada sobretudo contra suas próprias populações. No caso específico de algumas batalhas aéreas da semana passada, acompanhadas pelas estações de radar dos vizinhos Kuwait e Qatar, esse amadorismo saltava aos olhos. "Parecia uma batalha da II Guerra Mundial de tanto tempo que demorava", conta um analista ocidental que observava um confronto de cinco aviões a 10 minutos de distância. "Em lugar de um ataque ultra-rápido, perfeitamente possível com esses jatos modernos equipados de metralhadoras que miram e disparam por meio de sofisticados sistemas de radar, os caças iranianos e iraquianos mergulhavam e giravam feito loucos à procura do melhor ponto de mira. Ou eles não sabem atirar, ou não sabem mirar", concluiu.
Até mesmo o primeiro bombardeio do Iraque contra o aeroporto de Teerã, tão festejado pela imprensa de Bagdá, foi um exemplo de deficiência dos dois lados. Bastou que os quatro Mig envolvidos no ataque pedissem autorização de aterrar em farsi, a língua oficial do Irã, e pronunciassem o código da manobra, para que o espaço aéreo lhes fosse aberto pelos iranianos. Em contrapartida, dos catorze foguetes que os pilotos do Iraque dispararam sem qualquer impedimento por parte do inimigo, apenas três explodiram. Acrescente-se a isso o fato de que o alto comando militar do Irã foi virtualmente decapitado pela execução ou o exílio de seu corpo de generais, logo após a queda do ex-xá, e que o comando militar do Iraque domina mal a logística de uma guerra moderna, e está explicado o porquê do aparente impasse dos combates.
NA FRONTEIRA - Habituado à geografia relativamente simples das guerras entre árabes e israelenses, com o deserto de um lado e as colinas sírias de Golan do outro, o mundo de certa forma esperou que se repetissem as velozes marchas que egípcios e judeus empreendem, desde 1948, pelos desertos do Sinai e do Neguev. A propaganda iraquiana chegou a sugerir que suas tropas marchavam na direção de Teerã. Essa tarefa, por enquanto, é praticamente impossível - a guerra ainda está em torno do quintal da fronteira de cada um, na confluência dos rios Eufrates e Tigre, embora nesta primeira semana os combates terrestres tenham-se travado só dentro do território do Irã, que não conseguiu atravessar nenhum soldado para o terreno inimigo. A cidade de Khorramshar, que Bagdá tomou pelo rádio e depois teve que reconhecer que ainda não estava em seu poder, está praticamente na fronteira entre os dois países. O mesmo sucede com Abadã, sede da maior refinaria do mundo.
A menos que esta guerra pudesse durar de seis meses a um ano, o Iraque, mesmo com sucessos militares, pode ambicionar apenas à conquista da faixa de terra do estuário do rio Karun, onde estão, a pequena distância, Abadã e Khorramshar. Qualquer ofensiva ao norte, onde está Teerã (a quase 600 quilômetros da fronteira), tem de levar em conta um obstáculo mais forte que as Forças Armadas do Irã em qualquer tempo: a cadeia de montanhas dos montes Zagros, região árida e de acesso tão assustador que, em 5 000 anos de civilização, foi ocupada apenas por pastores nômades. A fronteira entre os dois povos, que já se moveu centenas de vezes desde que o persa Ciro tomou Babilônia, perto de Bagdá, há 2 519 anos, favorece o Irã, pois ela termina com as encostas das montanhas e, em território iraquiano, há apenas planícies. Assim, seria teoricamente muito mais fácil que o Exército do Irã, invadindo o Iraque, se aproximasse de Bagdá, a menos de 200 quilômetros, que uma delirante marcha sobre Teerã - que requereria um maciço lançamento de pára-quedistas do outro lado das montanhas, com um gigantesco apoio de equipamentos transportados por via aérea inteiramente fora do alcance do Iraque. O Iraque pode vencer a guerra, mas não tem como ocupar o Irã nem como submetê-lo a uma clássica rendição incondicional.
NENHUMA VITÓRIA - Estrategicamente, o feérico tiroteio mútuo sobre as refinarias não leva a guerra a um desfecho rápido. Destruindo parcialmente Abadã, o Iraque não consegue efeitos militares imediatos. O mesmo sucede com o Irã, que arrasou as instalações iraquianas de Basra. A destruição de refinarias, do ponto de vista militar, prepara o enfraquecimento final do inimigo, mas não o acelera - na primeira semana de uma guerra, colocar fora de combate uma esquadrilha de Phantom vale mais que milhares de barris de óleo queimados. Na verdade, o efeito mais visível dessa recíproca fúria contra as refinarias talvez seja fazer com que Irã e Iraque, ironicamente, se tornem os primeiros países a sofrer o racionamento de combustível com que ameaçam o resto do mundo.
Por isso o Irã, mesmo abalado para o futuro com os golpes sofridos, mantém uma capacidade militar imprevisível. Até a manhã de sábado, o Iraque não conseguira nenhuma vitória absolutamente decisiva sobre o que os estrategistas chamam de "os tendões da guerra". Os iraquianos entraram algumas dezenas de quilômetros em território do Irã mas isso não lhes dá grandes vantagens militares. Mesmo o bombardeio das duas capitais pouco significado tem, pois os dois países, atirados em corridas armamentistas de propaganda, dispõem sempre de modernos aviões de combate e de incompetentes sistemas de defesa aérea. A defesa do Irã, no passado manejada por americanos, estava praticamente fora de operação. A do Iraque, quase inexiste. De toda a forma, era inegável que, na primeira fase da guerra, o Iraque detinha claramente a iniciativa, conquistara no território inimigo posições importantes para futuras negociações e golpeara mais fundo a economia e as Forças Armadas do Irã do que fora atingido pela resistência e pelos contra-ataques iranianos.
Assim, a primeira semana de guerra entre os dois países parece destinada a terminar com muita fumaça e grandes lances de propaganda ao lado de pequenos resultados militares. De concreto, há pouco mais que o óbvio: o fato de o Iraque ter ocupado um espaço, ainda que pequeno, do Irã, coisa impensável há dois anos, e, como conseqüência, o fato de o Irã ter aprendido na carne o preço histórico da liquidação de boa parte do comando de suas Forças Armadas - além, naturalmente, de estar pagando o preço pela arrogância do xá que, entre outras coisas decidiu construir a maior refinaria de petróleo do mundo bem na fronteira com seu maior inimigo.
TENTAR A CHANCE - Foi a convicção de que o Irã de Khomeini estava golpeado internamente pelo caos e pelo fanatismo, e se encontrava pela primeira vez maduro para ser desafiado, que levou Saddarn Hussein a tentar sua chance histórica. Ele estimou que talvez jamais se repetissem condições tão favoráveis para o Iraque árabe derrotar o antigo império persa e com isso arrebatar para si o papel de senhor do golfo Pérsico, sem titular desde a saída de cena de Reza Pahlevi. O momento também parecia extremamente propício para Hussein ocupar uma segunda vaga na região: a de líder do mundo árabe, acéfalo desde que o nacionalista egípcio Gamal Abdel Nasser morreu em 1970.
O sucessor de Nasser, Anuar Sadat, decidiu abdicar dessa honra ao ousar tentar uma fórmula de paz com o Estado de Israel. A Árabia Saudita, líder religiosa da causa árabe, também não poderia ocupar nenhuma posição de ponta por falta absoluta de gente - ainda recentemente, teve de iniciar negociações para importação de 10 000 soldados paquistaneses para garantir sua própria segurança interna. Quanto à estridente Síria, sempre pronta a guerras verbais contra Israel, ela não tem petróleo, perdeu todos os confrontos militares nos quais se envolveu e ainda não conseguiu sequer libertar suas próprias colinas de Golan da ocupação israelense. Segundo os cálculos do presidente do Iraque, se ele conseguir obter a devolução para mãos árabes de três ilhotas estratégicas situadas à entrada do vital estreito de Hormuz, abocanhadas pura e simplesmente pelo xá do Irã em 1971, os países da região terão com ele uma dívida de defesa da honra árabe. E também da defesa do escoamento do petróleo do golfo Pérsico, que tem no estreito de Hormuz seu mais delicado gargalo. As três ilhas - Abu Musa, Grande Tomb e Pequena Tomb - controlam a passagem do estreito, cruzado a cada dia por 140 navios, 70% dos quais são petroleiros.
MOBILIZAÇÃO - Se, de quebra, a ofensiva iraquiana conseguir arrancar do Irã, na hora do acerto de contas, uma autonomia maior para as regiões de maioria árabe, além do controle definitivo pelo governo de Bagdá do estuário de Shatt al Arab, a guerra terá valido a pena para Saddam Hussein. O ideal, para o Iraque, seria um rápido congelamento do conflito armado por algum tipo de mediação islâmica antes que suas forças comecem a dar sinais de desgaste. O interesse do Irã, em contrapartida, reside justamente num prolongamento da guerra para permitir que suas deficiências bélicas sejam substituídas por algum tipo de gigantesca, embora caótica, mobilização popular. Afinal, o Irã tem 36 milhões de habitantes contra apenas 12 milhões do Iraque, e parte da resistência a um avanço maior iraquiano na região de Abadã se deve, justamente, a uma participação da população iraniana local na defesa da cidade.
Ironicamente, o político iraniano mais cotado para substituir o aiatolá Khomeini em caso de desagregação de seu regime foi também quem menos compreendeu a profundidade da ferida nacional iraniana no momento. Shapur Baktiar, último chefe do governo da era Pahlevi, e atualmente exilado em Paris, apostou todas suas fichas numa vitória rápida e completa das forças iraquianas e numa conseqüente desmoralização geral do atual regime de Teerã. Na verdade, ele saberia há quase um mês dos planos de invasão de Bagdá e teria feito um acordo com o próprio Saddam Hussein para ser empossado como líder do governo iraniano dos pós-guerra.
Sua força de sustentação era um grupo de ex-oficiais do falecido Reza Pahlevi, chefiados pelo general de quatro estrelas Gholam Ali Oveissi, de 60 anos, ex-chefe do Estado-Maior e atualmente exilado também em Paris. Oveissi é chamado pelos seguidores do aiatolá de "açougueiro de Teerã" porque, em 1978, quando era governador militar da capital, cerca de 3 000 manifestantes contra o xá foram mortos por seus soldados. Segundo revelou a revista alemã Stern, Oveissi comandava uma diáspora de quase 65 000 soldados fugidos do Irã, preparando-os no Egito, em Bahrein, Omã e Iraque para a "hora H" da tomada do poder.
MENSAGEM - Mas, mesmo para iranianos que secretamente desejam ver o país livre do regime dos turbantes, uma volta de Baktiar nos braços do invasor parece ter soado indesejável - e tudo o que os golpistas em potencial conseguiram até o momento foi a reprovação generalizada. Considerados traidores da pátria, do Islã e de Alá, Baktiar e Oveissi não dispunham, até o final da semana, de nenhum apoio político aparente - e dificilmente conseguiriam ter sua imagem retocada num futuro próximo.
Na verdade, o Iraque é um inimigo tão visceral dos iranianos que essa guerra já provocou um até então impensável embrião de ponte entre o Irã do xá Reza Pahlevi e o Irã do aiatolá Khomeini: na tarde de quinta-feira, o príncipe herdeiro Reza Ciro, filho mais velho do xá e tantas vezes ameaçado de morte pelos líderes atualmente no poder em Teerã, enviou mensagem ao novo comandante do Exército iraniano oferecendo-se para lutar nas fileiras de seu país. É bem verdade que o oferecimento foi feito em Paris, e não num avião rumo ao campo de batalha, mas seu gesto não pode lhe render juros. No dia seguinte, o próprio aiatolá fazia chegar aos círculos de oficiais iranianos exilados no exterior o recado de que eles estavam sendo convocados para juntar-se "na luta pela independência do Irã".
Acreditando na carta de Baktiar, o Iraque também pode ter cometido seu grande equívoco em relação ao desdobramento da crise iraniana. Caso a guerra liquide ou entorpeça o poder religioso de Khomeini, é bastante provável que o novo homem forte do Irã esteja, nesses dias, em algum campo de combate. Afinal, quase sempre que uma revolução mata reis e generais instalando períodos de anarquia que levam à invasão do território do país, surge um general que se intitula salvador da pátria. O patrono dessa espécie é Napoleão Bonaparte, que começou sua vida derrotando os ingleses no cerco de Toulon.
SUPERPOTÊNCIAS - O arranque inicial desta guerra entre dois dos cinco maiores exportadores de petróleo do mundo revelou que esta é uma guerra cujo efetivo resultado só se poderá calcular a posteriori - isto é, terá vencido de fato o país que tiver sofrido menos danos nas instalações de produção, processamento e exportação de sua riqueza vital. Irã e Iraque são países ricos em recursos naturais, mas investiram grandes partes de seu produto em instalações petrolíferas - e não há a menor dúvida de que o fruto de toda uma geração de esforços feitos por um e outro lado está sendo seriamente comprometido por este conflito Outra hipótese sobre a qual se pode depositar seguras fichas é a de que, consolidado um cessar-fogo, haverá uma generalizada revoada de voluntários para colaborar na reconstrução dos dois litigantes - o ocidente, principalmente, deverá colocar à disposição de Irã e Iraque todos os recursos tecnológicos disponíveis para consertar tudo o que tiver sido danificado e substituir o que não puder mais ser reparado. Em Washington, havia até um certo otimismo na sexta-feira quanto à hipótese de alguns reparos poderem ser feitos a curto prazo.
O conflito, de todo modo, serviu para consolidar um pouco mais uma vertente histórica que se esboçava desde a guerra do Vietnã - a de que o mundo, afinal, a cada passo se torna insuscetível de ser moldado pelas superpotências. De um lado, a superpotência americana está na difícil situação de manter relações inamistosas com o Iraque e péssimas com o Irã - com o primeiro os EUA não têm relações diplomáticas e com o segundo, além de não terem, não conseguem sequer soltar seus diplomatas, seqüestrados desde novembro passado pelo governo iraniano. Durante a semana passada, em que se teria um conflito capaz de por em xeque o suprimento de petróleo para o ocidente, os EUA não trocaram qualquer mensagem direta com o Irã - e tudo o que obtiveram com o Iraque foi um contato formal e infrutífero com um diplomata iraquiano de segundo escalão acreditado junto à embaixada da Índia em Washington.
A URSS, por sua vez, teve que executar malabarismos semânticos e diplomáticos desde que foi disparado o primeiro tiro. Tendo um tratado de amizade e cooperação com o Iraque, mas tentando flertar com o Irã desde a queda do xá, Moscou declarou-se neutra no conflito e, comicamente, conseguiu acusar os Estados Unidos pela invasão do Irã sem sequer mencionar quem, afinal, de fato havia invadido seu vizinho - o Iraque. O mundo está cada vez mais complexo e multifacetado, desafiando os rótulos fáceis e os alinhamentos automáticos do passado - e, nesse sentido, essa guerra talvez seja o exemplo mais eloqüente.

GUERRA IRÃ X IRAQUE

GUERRA IRÃ X IRAQUE
Dois países do Oriente Médio entraram em guerra por questões territoriais. Na verdade se tratava de um problema imposto por ocasião de uma tentativa de Sadam Husseim em ampliar seu território e conseguir aumentar os seus recursos provenientes da extração de petróleo. Se conseguisse expandir suas terras com parte do território iraniano, Husseim sairia da condição de terceiro ou quarto lugar nas exportações, para chegar ao segundo ou até primero lugar, superando a Arábia Saudita. Era pura ganância, mas na outra parte da questão, existia o problema da Guerra Fria entre EUA e a então URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).
Inicialmente os EUA se posicionaram em favor do Iraque por interesses comerciais que não conseguia obter no Irã que impedia acordos comerciais com os EUA e declaravam claramente sua oposição ao sistema comercial americano, tendo como governante nada menos que um extremista religioso Aiatolá Khomeini. Com a posição americana em favor dos iraquianos, os soviéticos se colocaram em favor de Khomeini por oposição quase que convencional, ou seja, se um lado estiver a seu favor, o outro estará a meu lado.
Para invadir o Irã, os EUA queriam um auxílio e neste sentido, a presença e interesses de Husseim eram favoráveis e iam no encontro do interesse norte-americano.
Nos EUA a indústria bélica passou a se enriquecer, pois o Iraque não restringia nada que se referisse à compra de armamentos pesados. Comprava tudo o que estivesse disponível pelos americanos.
Do outro lado, o Irã fez o mesmo sem determinar limite algum para seu orçamento bélico, estando mais preocupado em conseguir armas que competissem em paridade com os armamentos que viam no outro lado.
Deste modo, o confronto entre Irã e Iraque também serviu como forma de comparar armamentos pesados e mesa de testes para analisar os equipamentos tanto por parte dos EUA, quanto por parte da URSS.
De olho neste mercado fabuloso, França, Itália e Inglaterra começaram a produzir armamentos pesados, metralhadoras, armas de multiplicidade, tanques de guerra, caças, entre outros.
Só para se ter idéia do que isso representou, em 1986 o PIB francês tinha mais de 80 % advindos da venda de armas.
Os franceses ganhavam muito com a venda de metralhadoras, tanques de guerra, mas principalmente os caças Mirrage que confrontavam com os Mig soviéticos, que tinham ainda os F-5 americanos para terem de superar.
Esta condição permitiu que EUA, URSS, França, Inglaterra e Itália, conseguissem se manter na condição de riqueza e estarem entre alemães e japoneses que apesar de terem sido destruídos na 2a. Grande Guerra, se mantinham como duas entre as três maiores potencias comerciais, algo que se perpetua até os dias atuais.
Mas a guerra imbecil entre Irã e Iraque acabou e dos outros cinco, somente os EUA e a atual Rússia, conseguem se manter no cenário internacional com certa representatividade. França, Inglaterra e Itália, passaram a perder capacidade comercial para China, Índia e Brasil.
Este último só não consegue se engajar no cenário internacional e perde sua oportunidade, por estar enfrentando crises burocráticas, extrema corrupção e falta de capacidade administrativa, impedindo o Brasil de se tornar uma das sete maiores potencias econômicas do mundo moderno.


Publicado em: agosto 10, 2007

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Como a ocupação invadiu Israel
Após seu triunfo retumbante contra os três maiores exércitos árabes, o país encheu-se de orgulho, dinheiro e ilusão. Quarenta anos depois, a sociedade está mais frágil, atemorizada e desigual. Há quem tema por suas chances de sobrevivência

Meron Rapoport - (21/06/2007)

Às vezes, a memória engana: quando quarenta anos nos separam da Guerra dos Seis Dias, uma parte dos israelenses confortam-se em crer que o período anterior a 1967 foi a idade de ouro, nosso paraíso perdido. E que Israel era uma sociedade humana e justa, onde os valores do trabalho, humildade e solidariedade se sobrepunham à ganância e ao egoísmo. Um ambiente no qual todos se conheciam e ninguém ocupava os territórios.
Evidentemente, é pura ilusão. Em 1966, ano anterior à ocupação, o desemprego atingiu a taxa recorde de 10%. A economia passou por uma forte recessão e, pela primeira vez na história, o número de israelenses que deixou o país superou o dos imigrantes. Os 400 mil árabes israelenses que não abandonaram suas cidades durante a Guerra de 1948 foram liberados do regimento militar [1]. A situação deles não deixou de ser crítica: as terras lhes foram confiscadas progressivamente para construir novas colonias judaicas.
A partir da Guerra dos Seis Dias, Israel foi considerado uma superpotência militar regional e, até mesmo, internacional. Em poucos tempo, a guerra modificou a economia nacional. A properidade pôs fim à recessão e baixou fortemente a taxa de desemprego. Quarenta anos mais tarde, o país é outro. Em 1967, o PIB por habitante era de US$ 1.500; em 2006, chegou a US$ 24mil. Israel passou ao 23º lugar no "Relatório de Desenvolvimento Humano de 2005", do Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD). Mais de 1,5 milhão de judeus se chegaram. A população judia total passou de 2,4 milhões para 5,5 milhões. Compreende-se, assim, por que a maioria dos cidadãos israelenses consideram a Guerra dos Seis Dias como um momento decisivo para o sucesso do país.
Porém, para os outros, 1967 contitui-se na causa de todos os males. Teoricamente, a esmagadora vitória das Forças de defesa de Israel frente aos três principais exércitos do mundo árabe — do Egito, Jordânia e Síria — deveria ter promovido um sentimento de segurança. Não foi o caso. Desde 1967, o país passou por, pelo menos, seis conflitos: guerra pelo uso do canal de Suez (1968-1970), Guerra de Kippur (1973), as duas Intifadas (1987-1993 e 2000-2005) e as duas guerras contra o Líbano (1982 e 2006). Cinco mil israelenses e 50 mil árabes (egípcios, sírios, libaneses e palestinos) morreram. Em resumo, o sétimo dia da Guerra dos Seis Dias ainda não terminou.
A dificuldade do país não é apenas o prolongamento do conflito: o exército não está obtendo vitórias. Também historiador, o general reformado Dov Tamari observou, logo depois dos acontecimentos do Líbano (julho de 2006), que a guerra de 1967 foi a última vitória incontestável de Israel. Segundo Tamari, todos os outros braços-de-ferro desembocaram numa retirada ou numa derrota. E, muits vezes, Tel-Aviv fez importantes concessões. Assim, a Guerra de 1973 resultou na retirada total do Sinai, conforme os acordos assinados com o Egito em 1979. A primeira Intifada conduziu aos acordos de Oslo em 1993. A invasão do Líbano, em 1982, terminou numa retirada incondicional, em 2000. Já a segunda Intifada desmantelou as colonias de povoamento de Gaza em quase dois anos.

Uma vitória que apenas ampliou a sensação de medo
No último conflito contra o Líbano, enquanto a classe política acreditava na vitória, somente 20% dos israelenses — segundo uma pesquisa publicada pelo jornal Haaretz, uma semana antes do fim da guerra — diziam-se crentes do triunfo do país. Essa dificuldade de obter uma vitória honesta explica porque um veterano da política israelense, que prefere manter-se anônimo, afirma não estar certo que Israel sobreviva por mais vinte anos. No lugar de apaziguar os medos, os quarenta anos de ocupação não fez mais do que acentuá-los.
Faz tempo que as coisas se turvaram. Após o triunfo de 1967, o general Moshe Dayan, eminente dirigente político da época, pronunciou a célebre frase: "Nós esperamos uma chamada telefônica dos árabes". Ele pretendeu difundir a idéia de que Israel se retiraria dos territórios ocupados — Sinai, Faixa de Gaza, Cisjordânia e Colinas de Golã — em troca de acordos com o mundo árabe. No seu livro 1967 [2], o historiador Tom Segev demonstra que a "boa" intenção do governo israelense não era verdadeira. Mas a posição de Israel foi percebida, no país e em todo o mundo, segundo as palavras de Dayan.
Nesse mesmo período, Israel engrenou, em outro lugar, um processo que tornaria todos os acordos de troca de territórios pela paz quase impossíveis. O primeiro-ministro trabalhista Levi Eshkol, considerado moderado, deixou os primeiros colonos instalarem-se na Cisjordânia (em Kfar Etzion) antes do fim de 1967. Dayan, então ministro da Defesa, ordenou a destruição de vilas e vilarejos sírios no platô do Golã ocupado para permitir a construção de uma colônia israelense sobre as ruínas da cidade síria de Kuneitra. E, no início de 1968, os israelenses foram autorizados a viver no coração da cidade ocupada de Hebron.
Quarenta anos depois, estamos diantes dos resultados. O centro de Hebron transformou-se numa cidade fantasma, onde os palestinos não são autorizados a habitar, passear e, sequer, fazer compras. Tudo isso para deixar o lugar livre para não mais do que 500 colonos judeus. Não é por azar, que o primeiro atentado-suicida na cidades — após o do Baruch Goldstein em 1994 — matou 39 muçulmanos no seio da mesquita de Abraham, na caverna dos Patriarcas.

Colônias de ocupação: o monstro ameaça Israel, seu criador

É suficiente olhar um mapa para compreender que as colônias da Cisjordânia foram construídas de acordo com um plano estabelecido: de uma parte, para isolar as comunidades palestinas uma das outras, e de outra, para criar uma continuidade entre as colônias judaicas e o território do Estado de Israel de antes de 1967. Essas implantações também foram construídas ao redor dos bairros árabes de Jerusalém, para separá-los (a parte oriental) das cidades e aldeias palestinas . Depois, construídas no vale do Jordão, para separar a margem oeste do Jordão da Jordânia. As estradas foram construídas ao longo das colônias, no coração da Cisjordânia, para cortar Naplus de Ramallah, ou Kalkilya de Tulkarem.
Grande arquiteto da colonização, Ariel Sharon declarou abertamente, em 1975, que seu objetivo era impedir a criação de uma entidade palestina. Apoiada por todos os governantes, de direita e esquerda, a estratégia foi bem sucedida. Atualmente, mais de 150 mil israelenses habitam centenas de colônias na Cisjordânia, e mais de 200 mil ocupam as novas aglomerações construídas na Jerusalém ocupada. Tal número permite modificar a atitude da classe política a esse respeito. Com exceção das formações árabes e do Partido Comunista, todos os dirigentes israelenses — de Yossi Beilin a Ami Ayalon, e de Ehoud Olmert a Tzipi Livni — consideram que a união dos "blocos de colônias" é parte integrante de qualquer acordo de paz. O fantasma do famoso muro de separação visa integrá-los a Israel.
O que é estranho é que esses mesmos dirigentes, incluindo Sharon, admitem — privada e , às vezes, publicamente — que as colônias constituem o principal obstáculo à assinatura de um acordo de paz com os palestinos e o mundo árabe. Israel é como uma vítima desse monstro que ele mesmo articulou, durante 40 anos de ocupação. É impossível absorver tais colônias sem anexar a margem oeste do Jordão, um passo que mesmo os governantes de extrema direita recusaram-se a dar. Tal recusa deve-se às implicações internacionais, jurídicas e demográficas. A diferença de taxa de natalidade faria com que o "Grande Israel" comportasse uma maioria palestina. Porém, os governantes não podem se desembaraçar das colônias, na medida em que tornaram-se componentes da sociedade israelense. A colonização tornou-se uma armadilha.
Israel tombou voluntariamente? Está tão acostumado à ocupação ao ponto de não poder mais ficar sem ela? Há quarenta anos, vivemos em uma sociedade baseada em privilégios. Mesmo antes da Guerra dos Seis Dias, os novos imigrantes originários de países árabes tinham direitos inferiores aos dos judeus provenientes da Europa. E os palestinos que viviam em Israel eram, da mesma forma, desfavorecidos. Mas depois de 1967, o Estado instaurou um sistema oficial de descriminação. Ele privou milhares de palestinos habitantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza (em 1967) de seus direitos políticos [3]. A vida deles passou — em todos os aspectos — para o controle dos comandantes militares.

Com a "riqueza", desigualdade social cada vez mais mais alarmante
Ao longo desses 40 anos, as relações entre os palestinos que vivem sob a ocupação e os israelenses são profundamente desastrosas. A situação de benefício de alguns e privação de direitos de outros parece absolutamente normal. As restrições cada vez maiores impostas aos palestinos, em matéria de deslocamento, e o fato de os israelenses só poderem encontrá-los na Cisjordânia quando servem como soldados levaram à acentuação das diferenças.
Um dos maiores solavancos da sociedade israelense após 1967 foi sua rápida transformação em uma sociedade capitalista moderna. Os grandes trabalhos desencadeados após a guerra criaram uma potente classe de empreendedores, que exploraram a mão-de-obra dos territórios ocupados a baixo custo. Bilhões de dólares — desde 1973, os EUA concedem 3 bilhões por ano a Israel, a título de ajuda militar — são investidos em alta tecnologia militar, tranformando o país em superpotência high-tech.
Devido ao sistema de privilégios instaurado com a ocupação, a sociedade foi progressivamente dividida, até um ponto extremo. Em 1967, mais de 80% da força de trabalho estava ligada a um sindicato único e potente, que controlava um terço da economia nacional. Os kibbutzim recebiam grande atenção. Atualmente, com menos de 25% de trabalhadores sindicalizados, temos uma das sociedades mais injustas do mundo ocidental: se considerarmos os coeficientes de Gini, que mede as desigualdades, o Estado hebreu ocupa o 62º lugar — um dos piores entre as economias avançadas [4]. Dezoito famílias controlam 75% da economia. Tal situação é, parcialmente, consequência da Guerra de Seis Dias.
Há outros resultados importantes. Depois de 1967, o conflito palestino-israelense ocupou um lugar preponderante (senão o mais importante) na cena internacional. Israel lucrou com tal conjuntura. Suas excelentes relações com os EUA, seu papel destacado na geopolítica do planeta, seu potente exército e sua prosperidade devem-se a esta posição. Assim como o fato de a Liga Árabe, após recusar todos os tipos de negociação, ao final da Guerra de Seis Dias, propor-lhe, agora, que conclua uma paz global com os países árabes.

Após a derrota de 2006, o medo do suposto "gigante islâmico"
As conseqüências de 1967 envolvem, também, aspectos muito negativos. Se Israel ganhou um lugar tão privilegiado no Ocidente, é porque o Estado hebreu é considerado uma sangrenta linha de frente entre Ocidente e Oriente — entre a civilização "judaico-cristã" (estranha combinação quando se conhece a história dessas duas religiões) e a muçulmana. Depois dos atentados do 11 de setembro, essa visão foi largamente disseminada, sobretudo, pela direita religiosa, para quem, após 1967, a colonização das terras de Israel obedece à vontade divina. Tal perspectiva transformou o conflito territorial e político em cultural e religioso. O vice primeiro-ministro e chefe do Partido Israel Beitenou ("Israel, nossa casa"), que preconiza a transferência de zonas árabes de Israel para os territórios ocupados, declarou ao jornal Haaretz que país era um "exemplo do mundo livre" [5].
Isso explica o sentimento apocalíptico que tomou conta de diversos setores da sociedade israelense após o conflito do Líbano, em 2006. Na medida em que o Hezbollah é apresentado como o braço armado do Irã, e a República Islâmica como a articuladora dessa "guerra de civilizações", o fracasso do exército israelense (poderoso e ultra-sofisticado) frente a alguns milhares de combatentes xiitas (vistos como mal-treinados) representou um trauma. Muitas pessoas interpretaram o fato de milhares de foguetes atirados sobre o norte de Israel — durante um mês, sem que o exército se mobilizasse — como o sinal que nós, israelenses, não somos desejados na região e poderemos ser derrotados pelo gigante muçulmano.
Esses quarenta anos paralisaram a sociedade a tal ponto que seus governantes não têm ombridade para realmente solucionar o conflito. A ocupação terminou por invadir Israel.

Tradução: Carolina Gutierrez
carol@diplo.org.br


[1] Esse regimento, que os obrigava a toque de recolher e a pedir licença para se deslocar, favoreceu a judeização das regiões árabes de Israel.

[2] Tom Segev, 1967, Denoël, Paris, 2007.

[3] Atualmente, são 3,5 milhões de palestinos nestas condições

[4] Para o coeficiente de Gini, zero representa a perfeita igualdade. Em 2006, Israel obteve 39,2 contra 36 do Reino Unido; 32,7 da França; 28,3 da Alemanha; e 40,8 do sEUA.

[5] Haaretz, Tel-Aviv, 30 de março de 2007.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

SUDÃO

A guerra no Sudão
A guerra no Sudão opõe as forças da Frente Nacional Islâmica, ligada ao governo do general Omar Hassan Ahmad al Bachir, ao Exército de Libertação do Povo Sudanês, que controla parcialmente três Províncias do sul do país.Al Bachir chegou ao poder em junho de 1989, por meio de um golpe militar. Com poderes ditatoriais, ele tenta impor a lei islâmica a todo o Sudão, mas enfrenta resistência no sul, onde há grande número de cristãos e animistas. Os rebeldes querem maior autonomia para a região.Acredita-se que a repressão à rebelião no sul e a fome, agravada pela seca, tenham causado a morte de 1,5 milhão e provocado o deslocamento forçado de 5 milhões desde o início da guerra. A região em conflito tem cerca de 8 milhões de habitantes.
Formas atuais de escravidão
Embora nenhum país do mundo admita hoje a escravidão legalmente, há práticas comuns, tanto em países pobres quanto desenvolvidos, que são identificadas como formas modernas de escravidão.
• Escravo de dívidas
É o trabalhador "amarrado" a seu empregador por dívidas contraídas por ele mesmo ou por seus pais. É o caso do migrante que recebe ajuda para viajar e, depois, trabalha para pagar o custo da viagem.
• Servidão
É o caso de um trabalha-dor rural sem terra forçado a trabalhar para um proprietário, em troca de um acesso a uma área onde ele passa produzir para si próprio.
• Casamento servil
Em vários países, meninas são prometidas em casamento a homens mais velhos desde pequenas. Em certos casos, os pais recebem um pagamento em forma de dote.
• Crianças escravas
É o caso de crianças "adotadas" por famílias, que as criam em troca de trabalho doméstico, por exemplo. Freqüentemente, elas não são enviadas à escola.
• Em troca de proteção
Especialmente em países de guerra, é muito comum pessoas serem forçadas a trabalhar de graça para as partes em conflito, em troca, por exemplo, de proteção.
ONG liberta 2.035 escravos no Sudão
A ONG (organização não-governamental) de direito dos seres humanos Solidariedade Cristã Internacional afirma ter comprado e depois libertado 2.035 escravos no sul do Sudão, durante uma viagem de sete dias no país.
A entidade diz ter pago US$ 50 por cabeça, em dinheiro, a um intermediário árabe. A organização, com sede na Suíça informa ter libertado mais de 11 mil cativos desde 1995. Essa última libertação é recorde, segundo a instituição.
Segundo habitantes do sul do Sudão, milícias árabes armadas e organizadas pelo governo em Cartum (capital), vêm do norte do país para seqüestrar mulheres e crianças, que, depois, são usadas como escravas.
Desde a década de 80, o país vive uma guerra civil entre forças leais ao governo, que quer impor a lei islâmica a todo o Sudão, e rebeldes do sul que seguem o cristianismo e cultos locais e lutam por mais autonomia. Nesta semana, na pequena vila de Yagot, mais de 600 escravos se reuniram sob uma árvore para esperar pela libertação. Os meninos escravizados trabalhavam como pastores, e as meninas faziam serviços domésticos.
As crianças contaram histórias de violência estupro e assassinato enquanto estiveram em poder dos árabes que as capturaram.
Ayak, que disse estar perto dos 20 anos, afirmou que estava grávida quando foi capturada há três anos na vila de Rianwei.
"Quando uma mulher tentava escapar, todas apanhavam. Eu fiquei inconsciente uma noite inteira. Quando acordei, minha perna estava paralisada e eu estava sangrando. Então perdi meu bebê", relatou.
Ela disse ter ouvido que seu marido ainda está vivo. Mas espera que aceite o bebê que levará para casa, produto de um estupro. Ela foi violentada por seu senhor árabe no norte do país. Outra ex-escrava, Amel, passou seis anos cativa. Ela disse que seu marido foi morto. Dois de seus três filhos foram tirados dela quando chegou ao norte.
Grupos de direitos humanos afirmam que há dezenas de milhares de escravos capturados no sul do Sudão, depois levados ao norte do país, a maioria trabalhando para árabes nas Províncias de Darfur e Kordofan.
Os críticos da prática da Solidariedade Cristã Internacional de comprar escravos para depois soltá-los afirma que estimula o comércio de escravos.
Segundo Carol Belamy, chefe do Unicef, agência da ONU para a infância, a organização está entrando em um círculo vicioso.
"Com US$ 50 por escravo em um país em que a maior parte das pessoas sobrevive com menos de US$ 1 por dia, essa prática estimula e o tráfico e a criminalidade", disse em comunicado.
A Unicef diz ainda ser contra, por princípio, à compra de escravos, mesmo que com o objetivo de libertá-los depois.
A organização suíça responde à acusação afirmando que a escravidão já existia muito tempo antes de seus membros começassem a libertar escravos.
Segundo a entidade, neste ano, quando foi libertado um número recorde de escravos, os habitantes do Sudão afirmaram que houve menos capturas.
Mas James Jacobson, da dissidência americana da Solidariedade Cristã Internacional, a Liberdade Cristã Internacional, diz ter encontrado provas de que crianças fingem ser escravas para atrair os dólares do Ocidente.
"Isso se transformou em um circo. O dinheiro do Ocidente está fazendo a situação piorar."

• Nome Oficial República do Sudão
• Capital Khartum
• Área 2.505.813 km2
• População 28,9 milhões de habitantes
• Idioma árabe (oficial), inglês e línguas africanas
• Religião islâmismo, 74,7%
crenças tradicionais, 17,1% cristianismo, 8,2%
• PIB US$ 5 bilhões (Brasil: US$ 775,7 bilhões, dado de 1998)
• Direitos Humanos centenas de pessoas morreram vítimas de execuções extrajudiciais nas zonas de guerra. A tortura é generalizada. Os grupos de oposição armada cometeram abusos contra os direitos humanos, como homicídios deliberados e arbitrários.
• Posição do IDH* 158º
* O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU mede o desenvolvimento do país com base na expectativa de vida, no nível educacional e na renda “per capita”. O Canadá lidera a lista e o Brasil está na 62ª posição.


Publicado na Folha de São Paulo de 09/07/99

quinta-feira, 3 de junho de 2010

OS CONFLITOS INDO-PAQUISTANESES 2º Ano




O Subcontinente Indiano e a Ásia Central


A Índia, com 1,1 bilhão de habitantes, é a segunda potência demográfica mundial. As projeções indicam que por volta de 2040 será de 1,5 bilhão de habitantes, ultrapassando a China . O Estado mais poderos da Ásia Meridional ocupa posição dominante no Indostão ou Subcontinente Indiano. A sua rivalidade histórica com o Paquistão configura um dos principais focos de tensões pós-Guerra Fria.
O Estado indiano caracteriza-se antes de tudo pela diversidade, que é étnica, lingüística, religiosa e cultural. O hindi, língua nacional, é utilizado por pouco mais de um terço da população e convive com catorze outras línguas oficiais. O inglês é a língua das elites. Centenas de dialetos regionais convivem na Babel indiana.
A religião majoritária, o hinduísmo, congrega cerca de 81% da população. A minoria muçulmana está concentrada na Índia setentrional, e perfaz 12% da população — o que equivale a cerca de 130 milhões de habitantes e torna a Índia o segundo maior país muçulmano do mundo, superado apenas pela Indonésia.
Existem inúmeras outras minorias religiosas, entre as quais se destacam, em função do papel político que desempenham, os 20 milhões de sikhs do Punjab. O sistema de castas da cultura hindu divide a população em 3 mil castas e 25 mil subcastas. As castas funcionam como realidade social profunda, resistente às mudanças e à modernização. Mesmo não reconhecido pela Constituição e enfraquecido no meio urbano, o sistema de castas continua a estruturar as relações sociais no meio rural, onde vivem quase 70% dos indianos.
A pluralidade social e cultural da índia reflete o mosaico de civilizações que floresce¬ram no Indostão. Mas essa pluralidade entra em contradição com a coesão que costuma caracterizar o Estado-Nação contemporâneo e se expressa numa miríade de conflitos e tensões regionais. Os dois maiores focos de conflitos separatistas são a Caxemira, onde se desenvolve a disputa internacional com o Paquistão, e o Punjab, que é palco do movimento separatista dos sikhs. Mas o eixo principal de tensões, em escala nacional, é formado pela rivalidade entre a maioria hindu e a minoria muçulmana.
Essa é uma rivalidade de fundas raízes históricas, ligadas às conquistas muçulmanas na Índia setentrional, a partir do século XIII. Mas as tensões contemporâneas entre as duas grandes religiões do Subcontinente Indiano emergiram junto com a partição da Índia britânica, em 1947. A criação do Paquistão como Estado muçulmano gerou identidades nacionais erguidas sobre alicerces religiosos. Essa identificação entre nação e religião é explícita no Paquistão. Na Índia, embora oficialmente rejeitada, constitui uma realidade política e cultural inegável.
O Congresso Nacional Indiano (CNI) parteiro da Índia independente, concebeu um Estado laico e democrático, fundado na separação entre a esfera pública da política e a esfera privada da religião. A democracia indiana produz, periodicamente e sem interrupção desde a independência, o espetáculo das maiores eleições livres de todo o mundo. Esse é o esteio mais firme da unidade da Índia. Contudo, na década de 1990, o acirramento dos conflitos entre hindus e muçulmanos configurou uma ameaça real ao caráter laico e democrático do Estado indiano. As tensões religiosas adquiriram intensidade e dramatismo em 1992-93, quando eclodiram sangrentos confrontos entre hindus e muçulmanos no vale do Ganges e na Índia Ocidental. Esses episódios enraizaram o Bharatiya Janata Party (BJP), partido nacionalista hindu, entre as populações da Índia setentrional. O desgaste crescente do Partido do Congresso, atingido por desmoralizadores escândalos de corrupção, conferiu ainda maior apelo ao BJP, principalmente nos grandes centros urbanos. Em 1998, pela primeira vez, o BJP conseguiu uma clara hegemonia parlamentar e liderou o governo até 2003. No ano seguinte, o CNI venceu as eleições e voltou ao poder. Atualmente, a dinâmica política da Índia organiza-se com base em alianças que se formam em torno de um ou outro dos dois grandes partidos.
Por princípio, os nacionalistas do BJP identificam a nação indiana à religião hindu. Nos seus primeiros tempos, quando constituíam um pequeno núcleo oposicionista, os líderes do BJP prometiam mudar a Constituição e conferir privilégios aos hindus. O discurso fundamentalista amenizou-se aos poucos e tendeu a tornar-se vestigial depois da chegada do partido ao poder. Mas os muçulmanos temem que os velhos princípios se expressem, eventualmente, como política de governo. Nessa hipótese, o Estado in-diano estaria colocado diante de uma encruzilhada histórica e as bases institucionais da unidade da Índia teriam sido violentamente solapadas.
A política externa indiana conservou notável coerência, desde a independência. O neutralismo, elaborado no governo de Nehru, expressou-se ativamente pela participação, em posição de liderança, no Movimento dos Países Não-Alinhados. Durante a Guerra Fria, a índia não integrou o dispositivo de alianças militares pró-ocidentais na orla asiática e firmou tratados de cooperação econômica e tecnológica com Moscou.
A Índia sempre procurou firmar a sua liderança no Indostão. A rivalidade com o Paquistão a conduziu a prestar apoio militar à secessão do Paquistão Oriental (Bengala), que originou o Estado de Bangladesh. A Índia mantém disputas de fronteiras com Bangladesh e o Nepal. Contudo, a disputa realmente explosiva é a que envolve o Paquistão e a China e tem por foco a Caxemira.
O encerramento da Guerra Fria e a implosão da União Soviética aprofundaram drasticamente a percepção de insegurança da Índia. No plano geopolítico, a ameaça continental representada pela China deixou de ser contrabalançada pelos laços espe-ciais tecidos com a União Soviética. À ameaça continental, soma-se a ameaça regional, representada pelo Paquistão. O ambiente externo hostil tem provocado, como reações, a aceleração do programa nuclear e uma disposição para o estreitamento de relações com os Estados Unidos. É nesse contexto que se situa a estratégia de modernização e liberalização de uma economia que mescla fundamentos arcaicos com elementos de surpreendente dinamismo.




O conflito indo-paquistanês

A rivalidade regional entre a Índia e o Paquistão tem as suas raízes na estratégia britânica de descolonização e nas divergências entre o Partido do Congresso e a Liga Muçulmana, que conduziram à bipartição da União Indiana segundo critérios político-religiosos. A soberania sobre a Caxemira, região encravada na faixa de fronteiras do Himalaia, fixou-se como foco mais importante da rivalidade entre os dois novos Estados.
Em outubro de 1947, a Caxemira tornou-se palco da primeira guerra indo-paquistanesa. Confrontado com uma invasão de forças tribais paquistanesas, o marajá hindu que governava a região majoritariamente muçulmana optou pela adesão à Índia, embora preferisse a independência. Uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, em abril de 1948, exigiu a retirada das forças paquistanesas e determinou a realização de um plebiscito regional sobre a adesão à Índia ou ao Paquistão.
O plebiscito jamais foi realizado e a Caxemira passou a refletir o antagonismo entre os princípios de construção nacional dos Estados rivais. O Paquistão ergueu-se sobre o princípio das "duas nações", segundo o qual a religião define as identidades nacionais distintas de paquistaneses e indianos. Esse princípio fundamenta a reivindicação de soberania sobre o território da Caxemira. Por outro lado, o princípio nacional indiano assenta-se sobre a precedência da língua e da cultura. A independência de Bangladesh, habitada majoritariamente por muçulmanos, é apresentada pela Índia como prova de que a identidade nacional não está ancorada no princípio religioso.
A Caxemira é uma região histórico-geográfica situada na faixa de contato entre a Ásia Central muçulmana e as civilizações indiana e chinesa. Com território de aproximadamente 220 mil km2, é atravessada por duas cadeias montanhosas paralelas: o Hindu-Kush e o Himalaia. A maior parte da região está situada em cotas de 2 a 6 mil metros de altitude e diversos picos ultrapassam os 7 mil metros. Entre o Hindu-Kush e o Himalaia encontra-se o vale do rio Indo, que nasce nos altos planaltos tibetanos do sudoeste da China e percorre quase toda a Caxemira, antes de entrar no Paquistão. Na primeira metade da década de 1960, duas guerras explodiram na Caxemira. O estatuto regional atual é produto desses conflitos. Atualmente, a Caxemira abriga pouco mais de 10 milhões de habitantes e está dividida entre Índia, Paquistão e China.
A Caxemira indiana, com pouco mais de 100 mil km2e cerca de 6,5 milhões de habitantes, corresponde ao Estado de Jamu-Caxemira, o único de maioria demográfica muçulmana. Uma linha de controle separa o Estado de Jamu-Caxemira da Caxemira paquistanesa (a chamada "Caxemira Livre"), que ocupa cerca de 78 mil km2 e abriga quase 3,5 milhões de habitantes, na sua maioria muçulmanos xiitas. A "Caxemira Livre" dispõe de autonomia limitada e funciona, do ponto de vista da propaganda paquistanesa, como modelo político para a administração futura de uma Caxemira reunificada. A Caxemira chinesa foi, em parte, conquistada na guerra sino-indiana de 1962. Com apenas cerca de 40 mil km2 e alguns milhares de habitantes, corres¬ponde quase totalmente à área do Aksai Chin, que está ligada à região autônoma do Tibete.
A Índia considera toda a região como parte integrante de seu território. O Paquistão considera-se um "país incompleto", enquanto não conseguir a incorporação da Caxemira. Oficialmente, a China aceita discutir o futuro das áreas que controla, mediante um acordo bilateral prévio entre Índia e Paquistão. Uma pesquisa independente de opinião conduzida entre os habitantes da região em 1995 apurou larga maioria favorável à independência.
Por suas próprias faltas, a Índia perdeu os corações e mentes dos habitantes da Caxemira. Nos tempos de Nehru), o mais popular líder muçulmano regional, xeque Muhammad Khan, preferia o secularismo indiano ao sectarismo religioso paquistanês. Mas quando o xeque flertou com a ideia da independência, conheceu a prisão na Índia.
A guerra de 1962 e o desenvolvimento do programa nuclear chinês, até o teste atômico de 1964, impulsionaram os esforços indianos para a construção de um artefato atômico. Em 1974, a Índia conduziu o seu primeiro teste nuclear e definiu a sua política, que consiste na combinação da "dissuasão mínima" e da doutrina de uso do arsenal nuclear apenas em resposta a uma agressão nuclear prévia.
No plano internacional, a Índia assumiu a linha de frente da crítica ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), consubstanciando a sua política em sucessivas propostas voltadas para o desarmamento nuclear global. Em função da sua política externa neutralista, a Índia se distingue crucialmente dos países europeus e do Japão, pois não dispõe da segurança fornecida pelos Estados Unidos. Assim, do ponto de vista de Nova Délhi, o TNP representava, pura e simplesmente, o congelamento da vulnerabilidade indiana diante da China. Na década de 1990, a implosão da União Soviética e o fortalecimento econômico e militar da China acenderam luzes vermelhas entre os estrategistas de Nova Délhi. Esse foi o pano de fundo dos cinco testes nucleares conduzidos pela índia no deserto do Rajastão, em maio de 1998.
Mas os testes indianos constituíram, mais especificamente, uma resposta à evolução dos tratados e regimes internacionais voltados para a não-proliferação nuclear. Em 1995, a vigência do TNP foi estendida indefinida e incondicionalmente. Em 1996, após uma série de explosões chinesas, foi assinado o tratado de banimento de testes nucleares. Esses eventos assinalaram o fracasso da diplomacia indiana voltada para o desarmamento nuclear e, sobretudo, ameaçaram congelar ou mesmo ampliar a vantagem estratégica da China diante da índia.
Os testes de 1998 evidenciaram a decisão estratégica da Índia de prosseguir no curso de edificação de uma dissuasão mínima contra a China, assegurando a modernização e o caráter operacional do seu pequeno arsenal nuclear. Mas, como era de se esperar, a lógica da situação aguçou a percepção de insegurança paquistanesa, provocando reação imediata. O Paquistão provavelmente dispunha da capacidade de construir um artefato nuclear desde meados da década de 1980. Contudo, essa capacidade foi evidenciada pelos seis testes no Baluquistão realizados logo depois das explosões indianas.
As explosões nucleares dos Estados rivais do Indostão estremeceram os alicerces de todo o edifício de não-proliferação erguido durante décadas e coroado pelo tratado de banimento de testes. O seu significado não pode ser minimizado: pela primeira vez, Estados que não fazem parte do Conselho de Segurança da ONU alçavam-se, abertamente, à condição de potên¬cias nucleares.
Nesse contexto, em meados de 1999, as tensões crescentes na Caxemira degeneraram, mais uma vez, em hostilidades abertas. Militantes muçulmanos, apoiados mais ou menos abertamente pelas forças armadas e organismos de segurança do Paquistão, avançaram através da linha de controle e ocuparam posições na porção indiana da região. A Índia intensificou o conflito, rejeitando propostas paquistanesas de mediação internacional e lançando ataques aéreos e de artilharia pesada. Durante algumas semanas, a ameaça de um desfecho nuclear pairou sobre os dois países, mas o enfrentamento terminou com a retirada das forças apoiadas pelo Paquistão.
O desenlace representou uma humilhação para a política externa paquistanesa, aprofundou a crise institucional no país e preparou terreno para a tomada do poder pelos militares. Mais importante que isso, o eco da artilharia nas alturas do Himalaia revelou a extrema fragilidade de toda a arquitetura estratégica asiática, que não está adaptada à existência das duas novas potências nucleares.



O "Grande Jogo" na Ásia Central

A Ásia Central é a macrorregião habitada por povos muçulmanos e formada pelo Afeganistão e cinco antigas repúblicas soviéticas — Casaquistão, Usbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão e Quirguistão. Ao norte, limita-se com a Rússia; a leste, com a China; ao sul, com o Paquistão; a oeste, com o Irã. Desde a Antiguidade, a Rota da Seda conectou o Mediterrâneo ao Subcontinente Indiano e à China, através da Ásia Central. Através dela, persas e turcos difundiram influências culturais, que se sedimentaram nas línguas e na religião dos inúmeros grupos étnicos centro-asiáticos.
No século XIX, russos e britânicos engajaram-se no "Grande Jogo", como ficou conhecida a longa disputa que se desenrolou no Afeganistão mas tinha por foco o controle do Indostão. O império russo tentava prosseguir a sua marcha de conquista na Ásia Central, até atingir o Oceano Índico. A Grã-Bretanha procurava consolidar a sua obra imperial no Indostão e ganhar acesso à rota interior para a Pérsia e a China. O "Grande Jogo" conduziu à delimitação das fronteiras do Afeganistão, em 1893. O novo Estado centro-asiático funcionaria como separação entre os domínios russos, ao norte, e britânicos, ao sul.
Em toda a macrorregião, as fronteiras dos Estados atuais separam grupos étnicos e culturais. Na China, vivem mais de 1 milhão de casaques. O Afeganistão abriga uma numerosa minoria de usbeques. Os tadjiques participam do tronco linguístico persa; os turcomenos, casaques e usbeques participam do tronco linguístico turco. O traçado das fronteiras reflete o poder das potências — Grã-Bretanha, Rússia e União Soviética — e não a história dos povos centro-asiáticos.
Na Ásia Central, especialmente na área do Mar Cáspio, encontram-se vastas reservas, em início de exploração, de gás natural e petróleo. A bacia do Cáspio abriga reservas comprovadas de 28 bilhões de barris de petróleo e quase 70 bilhões de barris equiva as prospecções encontram-se ainda em estágio inicial.
A maior parte dos campos de petróleo se encontram em território do Casaquistão e a maior parte do gás, sob o deserto do Turcomenistão. Embora muito menores que as do Golfo Pérsico, as reservas do Cáspio são grandes o suficiente para atrair investimentos bilionários das transnacionais do petróleo e para que a região já seja vista como a "nova fronteira" dos hidrocarbonetos. Sob a perspectiva dos investimentos estrangeiros, um dos grandes trunfos da bacia do Cáspio reside no fato de que, ao contrário do Golfo Pérsico, seus recursos estão disponíveis para exploração pelas grandes empresas ocidentais.
A bacia do Cáspio é a única vasta reserva de hidrocarbonetos distante de qualquer saída oceânica. A Rússia controla o grande duto que escoa petróleo e gás para o Mar Negro (rota 2, no mapa a seguir). Um outro duto, mais recente, parte do Azerbaijão e atinge o porto de Supsa, na Geórgia (rota 3). Apenas um gasoduto de pequena extensão, que conecta o Turcomenistão ao norte do Irã, inaugurado em 1997, evita o território russo. O novo "Grande Jogo" que se desenvolve na Ásia Central tem por foco as rotas dos futuros dutos que viabilizarão as exportações de petróleo e gás.
A "diplomacia dos dutos" na Ásia Central é um jogo complexo, pois os interesses empresariais muitas vezes estão em conflito com os interesses geopolíticos. A Rússia pressiona pela construção de um novo duto, ligando o Casaquistão ao Mar Negro, atra-vés do seu território (rota 1), e pela interligação das reservas casaques ao seu sistema nacional de dutos (rota 4). Todas essas soluções tendem a reforçar o poder de Moscou sobre a antiga Ásia Central soviética.
A China participa ativamente da "diplomacia dos dutos", com o projeto de uma rota oriental que conectaria as reservas do Casaquistão ao seu território (rota 10). Esse duto percorreria cerca de 2 mil quilômetros apenas em território casaque, envolvendo custos astronômicos. As suas justificativas não se encontram na esfera da economia, mas na da geopolítica.
As rotas ocidentais são as preferidas pelos Estados Unidos, mas a Turquia alega que o Estreito de Bósforo não comporta a expansão do trânsito de superpetroleiros. Nessas condições, Washington parece apostar na construção de um duto ligando a Geórgia ao porto turco de Ceyhan, no Mediterrâneo (rota 5). Essa solução, evidentemente, agrada à Turquia e às antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso. Contudo, envolve custos elevados, inclusive de construção de dutos transcaspianos (rotas 6 e 7).
Do ponto de vista empresarial, as melhores soluções são as rotas meridionais. Con¬tudo, essas rotas apresentam sérios inconvenientes estratégicos. Há projetos de conexões entre o Turcomenistão e o Mar Mediterrâneo ou o Golfo Pérsico, através do Irã (rotas 8 e 9). Mas esses projetos enfrentam a oposição de Washington, que não quer transformar o Irã em corredor dos hidrocarbonetos do Cáspio.
A empresa americana Unocal expressou interesse em construir um oleoduto e um gasoduto entre o Turcomenistão e o Paquistão, através de território afegão (rota 11). Geográfica e economicamente, a ideia tem sentido, mas o obstáculo é a instabilidade política crônica no Afeganistão.
O Afeganistão surgiu como Estado-tampão, na moldura da disputa anglo-russa do século XIX. Essa entidade geopolítica artificial reúne grupos étnicos e culturais dispa-ratados, cujas histórias estão associadas às dos povos dos países vizinhos: Paquistão, Usbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. A fronteira cultural básica separa os tadjiques, usbeques e hazaras do norte à numerosa etnia pashtun do sul.
O país é cortado diagonalmente por dois grandes sistemas montanhosos, separados pelo extenso vale do rio Cabul, que é tributário do Indo. Ao longo da história, os con-quistadores do Afeganistão sempre conseguiram se estabelecer em Cabul, mas jamais tiveram o controle das cordilheiras, que funcionam como santuários e plataformas para os guerrilheiros. Os britânicos, no século XIX, e os soviéticos, no século XX, vivenciaram as dificuldades intransponíveis que a geografia física coloca diante dos empreendimentos de controle do conjunto do território afegão.
Sob a perspectiva da antiga União Soviética, o Afeganistão era um elemento geo¬político crucial para a estabilidade da Ásia Central. Uma influência decisiva de Moscou sobre o Estado afegão parecia indispensável para evitar o surgimento de movimentos separatistas muçulmanos nas repúblicas soviéticas da Ásia Central. Quando, em 1979, essa influência foi abalada por uma mudança de regime em Cabul, a União Soviética deflagrou a aventura de ocupação militar do Afeganistão.
Durante uma década, o Afeganistão foi o "Vietnã da União Soviética". Os guerrilheiros mujahedin afegãos receberam financiamento dos Estados Unidos e da China. Armas e suprimentos fluíam através do Paquistão. Controlando as montanhas, sob a direção dos "senhores da guerra" regionais, os mujahedin jamais permitiram a consolidação do domínio soviético, que se limitava a Cabul e a algumas rotas estratégicas. A desmoralizante retirada soviética, em 1989, contribuiu para acelerar a crise que conduziria à implosão do "império vermelho". Do ponto de vista paquistanês, o Afeganistão apresenta um duplo interesse. De um lado, a influência sobre o país vizinho permitiria que o Paquistão se tornasse o corredor principal entre os hidrocarbonetos do Cáspio e o mercado mundial. De outro, o controle sobre o regime de Cabul conferiria ao Paquistão a profundidade estratégica *j necessária para sustentar um prolongado conflito com a índia. Depois da retirada soviética, o Estado afegão entrou em virtual dissolução, como resultado da guerra entre as facções mujahedin rivais. Nesse ambiente, sob o patrocínio paquistanês, surgiu o grupo fundamentalista Taleban, que chegaria ao poder em 1997.
O Taleban nasceu nas escolas sunitas mantidas por grupos islâmicos fundamentalistas do Paquistão, nos dois lados da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. Financiado e armado pelos serviços secretos paquistaneses, o Taleban aproveitou-se da guerra clânica afegã para conquistar apoio popular na etnia pashtun, que habita o sul e oeste paquistanês e o sul afegão. O controle dos "guerreiros da fé do Taleban sobre Cabul e o Afeganistão meridional encurralou os grupos mujahedin enfraquecidos no norte do país.
No poder, o regime Taleban implantou a lei corânica e isolou o Afeganistão da comunidade internacional. A sua radicalização fundamentalista conduziu a Rússia a financiar a guerrilha residual dos mujahedin e provocou tensões crescentes com o Irã xiita. Em pouco tempo, até mesmo o Paquistão descobriu que o Taleban não podia ser controlado do exterior.
Os atentados de 11 de setembro em Nova York e Washington foram fruto da coope-ração entre o regime Taleban e o grupo terrorista islâmico Al-Qaeda, liderado pelo saudita Osama Bin Laden. A Al-Qaeda surgiu a partir da ruptura de Bin Laden com a monarquia saudita, em virtude da aliança da Arábia Saudita com os Estados Unidos na primeira Guerra do Golfo, em 1991. O líder terrorista, que havia combatido a ocupação soviética ao lado dos mujahedin, na década de 1980, instalou o seu quartel-general no Afeganistão e, sob a proteção do Taleban, conclamou à guerra santa contra os Estados Unidos.
A intervenção americana e a derrubada do Taleban, no início de 2002, assinalam o início de uma nova etapa na história turbulenta do Afeganistão. O regime instalado em Cabul, sob o patrocínio de Washington e das Nações Unidas, representa uma coalizão ampla de lideranças étnicas e clânicas. A coesão desse regime estruturalmente instável depende da presença de forças militares estrangeiras. Mesmo assim, o poder governa¬mental só se exerce plenamente na área de Cabul, pois diferentes "senhores da guerra" mantêm o controle das regiões distantes da capital e forças do Taleban e da Al-Qaeda atuam intensamente no sul e no leste do país.
A campanha no Afeganistão proporcionou a Washington a oportunidade para o estabelecimento de bases militares nas repúblicas centro-asiáticas vizinhas, que fazem parte da CEI. No plano geopolítico, a presença militar americana em Estados do "Exterior Próximo" da Rússia seria inimaginável antes do 11 de setembro de 2001. A manutenção dessas bases e o estreitamento de laços diplomáticos com os governos centro-asiáticos conferem aos Estados Unidos uma forte influência na macrorregião, que certamente se desdobrará no novo "Grande Jogo" pelo controle dos recursos naturais do Cáspio.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Região é marcada por divisões históricas


A República do Kosovo, após se separar da Sérvia, é o mais novo país dos Bálcãs
Podemos considerar os Bálcãs uma das regiões mais complicadas da Europa, e isso há muitos séculos. Uma série de conflitos marca a história da região, sendo que o último episódio, a independência de Kosovo (que se separou da Sérvia), em fevereiro de 2008, fez com que, mais uma vez, o mundo voltasse sua atenção para os Bálcãs. A localização geográfica da Península Balcânica nos ajuda a entender muito do processo histórico dessa região: situada no sudeste europeu, essa península é um dos principais caminhos entre a Ásia e a Europa. Ali, as culturas ocidental e oriental - e seus respectivos interesses políticos e econômicos - chocaram-se diversas vezes. Vários países compõem hoje a região: Albânia, Grécia, parte da Turquia na Europa, Romênia, Bulgária, além das repúblicas que compunham a ex-Iugoslávia: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Macedônia, Sérvia e, desde fevereiro de 2008, Kosovo. Vamos nos concentrar na história desses últimos sete países, a ex-Iugoslávia.
Durante a Alta Idade Média, tribos eslavas, vindas da Europa Central, passaram a ocupar os Bálcãs. Essas tribos eram, principalmente, sérvios, croatas e eslovenos; e, a partir do século 7, já ocupavam territórios mais ou menos definidos e organizavam seus próprios governos. Mas é importante lembrar que, desde o século 4, a região tinha sido determinada como marco divisor entre as duas partes do Império Romano. Por isso, no século 9, os sérvios que se localizavam ao leste da região foram convertidos ao cristianismo ortodoxo, sob influência de Constantinopla (Império Bizantino), enquanto os eslovenos e os croatas se converteram à religião católica romana. Assim, apesar de serem povos de mesma origem étnica, os eslavos dos Bálcãs foram se diferenciando. Por exemplo: a Sérvia e a Croácia, apesar de falarem a mesma língua, o servo-croata, adotaram alfabetos diferentes: os sérvios, o alfabeto cirílico; os croatas, o alfabeto latino.Entre os impérios Austro-Húngaro e Turco-Otomano. Entre os séculos 7 e 14 os eslavos dos Bálcãs lutaram para estabelecer suas fronteiras, cabendo aos sérvios a preponderância nesse processo. No século 12, a Eslovênia e a Croácia foram dominadas pela dinastia Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico(parte do qual viria e se chamar Império Austro-Húngaro séculos depois), enquanto a Sérvia, que fazia parte do Império Bizantino, enfrentou problemas com a expansão turco-otomana na Ásia e Europa, no século 14. Em 1389 os sérvios foram vencidos na Batalha de Kosovo-Polie e dominados pelos turco-otomanos (seguidores da religião islâmica). A região de Kosovo tinha forte significado para os sérvios, pois era sede de seus patriarcas (líderes religiosos da religião ortodoxa). A população sérvia de Kosovo, fugindo do domínio islâmico, se refugiou nas outras regiões eslavas: Croácia e Eslovênia, principalmente, mas também em Voivodina, na Hungria (todas essas regiões faziam parte do Império Habsburgo). A partir de então o domínio islâmico se ampliou nos Bálcãs. Os turcos, sem condições de controlar todos os territórios que dominavam na Ásia e na Europa, estimularam a conversão à fé islâmica, permitindo aos convertidos o direito de fazer parte da administração de seu império. Os sérvios que se converteram passaram a se autodenominar bósnios. Os albaneses convertidos foram estimulados a ocupar Kosovo. Já os sérvios de Montenegro, região protegida por montanhas, conseguiram manter sua autonomia. Essa situação de migração, tanto de refugiados sérvios quanto de albaneses e sérvios islamizados, vai se tornar o principal ponto da luta nacionalista dos séculos 19, 20 e 21.

Da partilha sob os nazistas a Josip Broz Tito
A fundação do Reino da Iugoslávia, em 1929, foi uma tentativa de encobrir e controlar as inúmeras e profundas diferenças da região dos Bálcãs, procurando reunir "os eslavos do sul" num único Estado. Mas essa unificação se mostrou impossível ao longo do tempo, pois os diversos povos da região não esqueceram suas antigas rivalidades. Em 1939, o rei Alexandre 1º (sérvio) foi assassinado por um nacionalista croata, e o príncipe Paulo assumiu como regente. Para complicar a situação, nesse mesmo ano estourou a Segunda Guerra Mundial - e em 1941 o governo da Iugoslávia se rendeu à Alemanha. Não aceitando tal situação, a população se rebelou, principalmente em Belgrado (Sérvia), o que levou a um maciço bombardeio dos alemães sobre a região e à fuga da família real para Londres.

Divisões e Rancores Nacionalistas
O Reino da Iugoslávia foi vencido e seu território dividido entre os países do Eixo. O croata defensor do nazifascismo, Ante Pavelic, passou a governar a Croácia, estabelecendo um governo pró-Alemanha, além de anexar grande parte da Bósnia-Herzegovina. A Eslovênia foi dividida entre alemães e italianos; a Sérvia foi ocupada por alemães; Montenegro, Kosovo, Dalmácia (na Croácia) e parte da Macedônia foram dominadas pela Itália; Voivodina foi entregue à Hungria. Ao mesmo tempo, vários conflitos étnicos varreram a região: sérvios, croatas, albaneses e bósnios aproveitaram a situação e deixaram florescer seus rancores nacionalistas - mais de 1 milhão de pessoas foram assassinadas.Na luta contra a ocupação do Eixo, dois grupos da resistência eslava se destacaram: os "chetniks", liderados pelo sérvio Draza Mihaïlovic, que eram hostis às outras nações eslavas; e os "partisans", do croata
Josip Broz, líder comunista conhecido como Tito, e que tinha como princípio a não exclusão étnica praticada pelos "chetniks".Tito recebeu apoio tanto de soviéticos quanto de ingleses, e dessa forma conseguiu expulsar as tropas do Eixo. Em outubro de 1945, com o final da guerra, a Assembléia recém-formada proclamou o nascimento da República Popular Federativa da Iugoslávia, declarando Tito seu governante e adotando o modelo socialista de governo, com o apoio da URSS.

TITO E A NOVA IUGOSLÁVIA
A República Iugoslava foi formada por 6 repúblicas federativas (Eslovênia, Sérvia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia) e 2 regiões autônomas (Voivodina e Kosovo, na Sérvia), com suas 2 nacionalidades reconhecidas (húngara e albanesa, respectivamente), sendo que cada uma das unidades da federação tinha certa autonomia em seus assuntos internos, inclusive com presidentes próprios.Nessa nova organização política, a Sérvia perdia todo o controle que detinha anteriormente: passava a ser um república como as outras 5 e teria que aceitar a diminuição de seu controle sobre Kosovo e Voivodina.O carisma e a autoridade de Tito garantiram que as rivalidades entre os eslavos ficassem em segundo plano. A repressão do governo a qualquer movimento étnico nacionalista foi violenta. E como só existia um partido, a Liga dos Comunistas da Iugoslávia, a imposição do ideal socialista acima das questões nacionais abrandou as tensões internas.Em plena Guerra Fria, Tito queria para a Iugoslávia um governo socialista diferente da URSS. Nas suas palavras: "Conciliar socialismo e liberdade". Surgiu daí um novo modelo socialista, chamado de titismo. Tal postura acabou levando ao rompimento entre Tito e Stálin(ditador soviético), em 1948. A Iugoslávia passou a ser, então, o único país do Leste Europeu aberto a negociações com o ocidente capitalista, além de liderar, junto com a Índia, a Indonésia e o Egito, o bloco dos países não-alinhados.Os investimentos que começaram a chegar do ocidente, principalmente dos EUA, permitiram a Tito reconstruir seu país, o que foi uma forma de amenizar as discórdias entre os eslavos.A Iugoslávia passou a ser vista como um modelo de regime socialista no mundo. Mas isso só foi possível graças à grande censura exercida pelo titismo. Na realidade, as coisas não estavam bem e iriam piorar depois da morte do grande líder Tito.

O Período pós-Tito
Quando Josip Broz Tito faleceu, em 1980, os nacionalismos eslavos se reacenderam e a unidade política da Iugoslávia só se manteve por mais uma década.Desde 1974, uma forma colegiada de governo havia sido implantada: representantes de cada uma das 6 repúblicas e das 2 regiões autônomas ocupariam o cargo de Chefe do Governo da Iugoslávia por um ano, rotativamente, garantindo a igualdade entre as federações, inclusive ampliando a autonomia de Kosovo e Voivodina. Até 1980, Tito era o líder supremo do país, o que manteve a unidade da Iugoslávia. Mas, depois de sua morte, essa forma colegiada de governo se mostrou ineficaz, pois os governantes nada podiam fazer em tão pouco tempo de mandato. Assim, o poder central foi sendo deixado de lado, ao mesmo tempo em que cresciam os poderes dos presidentes de cada região e os seus respectivos anseios de liberdade.

Problemas econômicos e fim do socialismo
questão nacionalista somava-se a grave situação econômica: em torno de 50% da população iugoslava vivia em extrema pobreza. Em 1980, a inflação era de 40% ao ano. Para tentar contornar esse problema, Tito já havia criado, na década de 1960, um Fundo de Solidariedade, segundo o qual as regiões mais ricas deveriam ajudar as mais pobres. Por exemplo, Kosovo, muito pobre, recebia do Fundo de Solidariedade mais de um milhão de dólares por dia. Por sua vez, a Eslovênia, república mais rica, que se opunha ao Fundo de Solidariedade, aproveitou da crise pós-Tito para iniciar seu processo de independência. Os problemas internos da Iugoslávia se agravaram quando o modelo socialista de governo começou a ruir no Leste Europeu: se o "povo iugoslavo" nunca existiu de fato, agora o socialismo não apresentava mais soluções para os problemas da Iugoslávia. A proposta de transparência política do líder soviético Mikhail Gorbachev, incentivou vários países do Leste Europeu, submetidos a ditaduras socialistas, a lutarem por maior autonomia política. Nesse processo, o sistema de partido único da Iugoslávia se desintegrou. Em 1990 foram realizadas eleições em todas as federações iugoslavas e somente na Sérvia e em Montenegro venceram políticos que defendiam a manutenção da unidade iugoslava.

Slobodan Milosevic e o sonho da Grande Sérvia
A desintegração da Iugoslávia não interessava aos sérvios, já que minorias sérvias se encontravam por toda parte da Iugoslávia. Além disso, se as regiões se separassem, a Sérvia afundaria numa grande crise, pois não teria o apoio econômico da Eslovênia e da Croácia.Dessa forma, o nacionalismo sérvio se reacendeu e encontrou no político seu principal líder. Milosevic ascendeu rapidamente em sua carreira política, ao defender a supremacia da Sérvia dentro da Iugoslávia e ao se colocar contra a independência de Kosovo, região autônoma da Sérvia, cuja maioria da população é de origem albanesa.Desde a década de 1960 Kosovo demonstrava sua insatisfação por estar submetida à Sérvia. Em 1968, estudantes da Universidade de Prístina se rebelaram, mas foram silenciados pela ditadura de Tito. Com a morte do ditador, em 1981 uma nova rebelião de estudantes e operários aconteceu - e, nesse episódio, a população sérvia de Kosovo passou a ser violentamente atacada pelos albaneses. Os sérvios consideram Kosovo o berço de seu povo, pois ali havia sido a sede de todo patriarcado sérvio na Idade Média (os sérvios, tendo se convertido à religião cristã ortodoxa na Idade Média, receberam o direito de ter seu próprio patriarcado, o que significava sua autonomia religiosa e política reconhecida pelo Império Bizantino). A imprensa sérvia noticiou com grande ênfase os massacres dos sérvios em Kosovo, o que fez aumentar o ódio da população sérvia espalhada por toda Iugoslávia. Nas eleições de 1990, enquanto que na Eslovênia e na Croácia políticos democratas chegavam ao poder, Milosevic, na Sérvia, impôs uma emenda constitucional que reintegrava Kosovo e Voivodina (de maioria húngara) ao controle sérvio, determinando inclusive que o ensino do albanês e do húngaro fossem proibidos nas escolas das regiões. As reações a tal atitude dos sérvios não tardariam: a Eslovênia e a Croácia, que nunca aceitaram uma autoridade sérvia, se proclamaram independentes. A Sérvia reagiu violentamente, invadindo seus territórios. Dessa forma, tiveram início dois dos mais terríveis conflitos étnicos na Europa pós-Segunda Guerra: a Guerra da Bósnia e a Guerra de Kosovo.

Conflitos étnicos nos Balcãs
As guerras da Bósnia e de Kosovo
No início de 1991, a Iugoslávia tinha como presidente um sérvio e, segundo o que estabelecia a forma colegiada de governo, que obedecia à sucessão rotativa da presidência, um representante da Croácia deveria substituí-lo. O presidente sérvio, contudo, não aceitou o político croata escolhido, e se manteve na presidência.A Eslovênia, então - manifestando-se contra a Sérvia na questão da sucessão presidencial e a favor da independência de Kosovo (submetida, a partir daquele mesmo ano, novamente à Sérvia), se declarou independente da Iugoslávia, no que foi seguida pela Croácia e pela Macedônia. Como reação, tropas do Exército Federal, composto por soldados da Sérvia e de Montenegro, invadiram as repúblicas da Eslovênia e da Croácia, onde se encontram minorias de origem sérvia.Na Eslovênia, a guerra durou pouco tempo (ficou conhecida como Guerra dos Dez Dias), mas na Croácia a situação foi bem mais complicada, pois a população sérvia da Croácia não aceitou a independência da região e passou a ser armada pelas tropas federais. Ao mesmo tempo, croatas que habitavam a Bósnia-Herzegovina se lançaram na guerra do lado da Croácia.

Guerra da Bósnia
Em março de 1992 foi a vez da Bósnia-Herzegovina também se declarar independente.Slobodan Milosevic, que culpava Josip Broz Tito(um croata) pela situação de crise que a Sérvia vivia, investiu com todas as suas forças contra croatas e bósnios. Sarajevo, capital da Bósnia, foi cercada - e por vários meses os moradores da cidade passaram por situações críticas: o fornecimento de água, eletricidade e aquecimento foi cortado e a ajuda humanitária que chegava até eles não bastava para suprir as carências de toda a população. As tropas federais (melhor seria dizer, da Sérvia) chegaram a ocupar 70% do território bósnio. Nesse conflito, conhecido como Guerra da Bósnia, a limpeza étnica foi um dos principais objetivos. E aqui não existem "mocinhos e bandidos": dos dois lados as atrocidades praticadas foram enormes. Mas como as tropas sérvias eram muito melhor armadas, bósnios e croatas foram os que mais sofreram. Parecia que o mundo assistia impassível ao conflito que dilacerava os Bálcãs. No clima de final de Guerra Fria, a Rússia passava por uma enorme crise, enquanto os EUA, que estavam saindo da Guerra do Golfo(1990-1991), relutavam em participar de mais um conflito. A Europa, acostumada, por anos, à submissão às ordens da OTAN ou do Pacto de Varsóvia, somente impôs um bloqueio econômico à Sérvia. Diante dessa conjuntura, o presidente dos EUA, Bill Clinton, mesmo violando acordos internacionais, começou a armar tropas da Croácia, que acabaram vencendo os sérvios em Krajina. Tal vitória forçou os líderes da Sérvia, da Croácia e da Bósnia a buscarem uma negociação de paz, selada em novembro de 1995: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina e Macedônia seriam países independentes, enquanto a Iugoslávia seria formada por Sérvia (incluindo Kosovo e Voivodina) e Montenegro (que em 1996 se tornou independente).

Guerra no Kosovo
Contudo, mesmo assim, depois de os Bálcãs estarem supostamente em paz, um problema ainda não havia sido resolvido: a questão de Kosovo. Em 1996, os albaneses de Kosovo formaram o Exército de Libertação de Kosovo e passaram a lutar por sua independência. A Sérvia reagiu violentamente a tal manifestação e, em 1996, estourou mais um sério conflito separatista e étnico na região: a Guerra de Kosovo.
Mais uma vez as tropas internacionais tardaram a chegar: depois de muita negociação e bloqueios econômicos, somente em 1999 a OTAN interferiu no conflito - e por 78 dias bombardeou impiedosamente a região. Em média, os países da OTAN gastaram US$ 64 milhões por dia de conflito, o que permite perceber o enorme e moderno aparato bélico usado. Milosevic foi obrigado a se render. Um ano depois, o líder sérvio foi preso e entregue ao Tribunal de Haia, para ser julgado por crimes de guerra e contra a Humanidade. Desde então, Kosovo passou a ser uma região protegida pelas Nações Unidas e pela OTAN (cerca de 28 mil soldados foram deslocados para a província). Até que, em fevereiro de 2008, o governo de Kosovo declarou sua independência, sem que tal atitude tenha sido aceita pela Sérvia.Tal episódio dividiu o mundo. Os EUA e parte da Comunidade Européia apóiam Kosovo, mas a Rússia e a Espanha apóiam a Sérvia, pois temem que o exemplo separatista kosovar estimule grupos separatistas em seus próprios territórios. As peças do xadrez da política internacional estão se movimentando... e a questão ainda não está resolvida.

EFEITO DOMINÓ DA EVENTUAL INDEPENDÊNCIA DO KOSOVO


A caixa de Pandora das fronteiras balcânicas


Com a questão do estatuto do Kosovo e o impasse político na Bósnia-Herzegovina, parecem estar reunidos todos os elementos de uma nova crise regional, uma crise que pune o fracasso das políticas conduzidas desde há quinze anos pela «comunidade internacional». Neste contexto deletério, volta a surgir a velha ideia de redefinir as fronteiras dos Balcãs. Numa altura em que os povos, as minorias e as reivindicações se misturam, uma tal abordagem poderá mergulhar a região no caos.


A provável independência do Kosovo poderá vir a ter pesadas consequências regionais. Para os sérvios da Bósnia-Herzegovina, que também reivindicam o direito à secessão de um Estado que nunca verdadeiramente funcionou, ela será um precedente. E poderá também provocar uma vaga de desestabilizações em cadeia, nomeadamente na Macedónia e no Montenegro, com o risco de pôr em causa todas as actuais fronteiras dos Balcãs.
Serão porém estas fronteiras um tabu ultrapassável, como cada vez mais «peritos » e diplomatas sugerem em voz alta? As guerras da década de 1990 foram desencadeadas em nome dos «grandes» Estados, da «Grande Sérvia» ou da «Grande Croácia». E por trás da reivindicação de independência do Kosovo perfila-se o espectro da «Grande Albânia»… Terá então chegado o tempo de se proceder a uma revisão de todas as reivindicações territoriais e de se definirem novas fronteiras – que por fim serão «justas» por coincidirem com a divisão étnica das populações? Será preciso que o mapa dos Balcãs seja redesenhado para garantir finalmente uma paz duradoura a esta região e, por conseguinte, a toda a Europa? A ideia, já antiga, ressurge regularmente.
Em 2001, durante o conflito da Macedónia, o editorialista Alexandre Adler propôs que se empregasse «a cirurgia de preferência à homeopatia» [
1] e que se encarasse a divisão desta república pós-jugoslava em regiões albanesas e macedónias. Nesse mesmo ano, lorde David Owen, antigo co-presidente da Conferência Internacional sobre a ex-Jugoslávia, propôs também um plano de redefinição das fronteiras balcânicas [2]. Fazendo-se eco a essas propostas, Arben Xhaferi, figura histórica do nacionalismo albanês na Macedónia, reclamou a criação de Estados «étnicos» [3].
Perante a constatação do malogro das negociações sobre o futuro do Kosovo e a impossibilidade dum compromisso sérvio-albanês, voltou à superfície a ideia duma divisão da província, que a «comunidade internacional» durante muito tempo considerara tabu. Wolfgang Ischinger, diplomata alemão representante da União Europeia na «troika diplomática» (um americano, um europeu, um russo) encarregada de levar a cabo as negociações sobre o Kosovo, declarou em Agosto de 2007 que não devia ser posta de lado nenhuma opção resultante de um acordo entre as partes implicadas; se Belgrado e Pristina conseguissem entender-se a respeito de uma divisão do Kosovo, a União Europeia deveria limitar-se a aprovar essa cisão…
A ideia tem a seu favor todas as aparências do bom senso: se determinadas populações não querem viver juntas, mais vale separá-las, podendo-se, se necessário, encarar deslocações «limitadas» de pessoas para fazer coincidir as novas fronteiras com a divisão étnica das comunidades… Mas imaginemos um instante que os planos dos aprendizes de feiticeiros se concretizam, que uma conferência internacional torna possível um novo traçado, pacificamente negociado, das fronteiras dos Balcãs ocidentais assentes em bases étnicas. Seria necessário, obviamente, prever uma unificação de todas as regiões onde os albaneses são maioritários, ou seja, a Albânia, o Kosovo, um quarto do Noroeste da Macedónia, mas também o vale de Presevo, no Sul da Sérvia, e as franjas orientais do Montenegro.
Nesse caso, a Macedónia, terrivelmente amputada, seria apenas um Estado dependente, a não ser que as correntes pró-búlgaras levassem a melhor e que o país se unisse ao seu vizinho oriental. A questão das minorias na Albânia não deixaria de ser levantada; os gregos do Sul do país poderiam reclamar a sua união à Grécia; e os albaneses expulsos depois de 1945 do Epiro do Norte, zona grega (região a que os albaneses chamam Cameria), não se esqueceriam de lembrar os seus direitos espezinhados. O Montenegro poderia reclamar compensações na região de Shkodra, onde continuam a viver minorias sérvio-montenegrinas, e a Macedónia reclamaria a agregação das aldeias eslavas em redor dos lagos de Ohrid e de Prespa.
Naturalmente, os sérvios da Bósnia-Herzegovina unir-se-iam à «mãe pátria», o que representaria o fim da Bósnia, tanto mais que os croatas da Herzegovina ocidental, da Bósnia central e de Bosanka Posavina (Orasje, Odzak) se uniriam à Croácia. Restaria pois, no máximo, um «micro-Estado» muçulmano-bósnio, concentrado à volta de Sarajevo, Zenica e Tuzla. E realizar-se-ia assim, em suma, o famoso plano de divisão da Bósnia-Herzegovina, esboçado em 1991 por Franjo Tudjman e Slobodan Milosevic [
4]. É claro que a Bósnia se agarraria à defesa do enclave oriental de Gorazde e reclamaria a união do Sandjak de Novi Pazar, actualmente dividido entre a Sérvia e o Montenegro [5].
Obviamente, o Estado montenegrino não subsistiria nas suas fronteiras actuais. Além da secessão das regiões albanesas e bósnias, teria de afrontar a secessão das regiões sérvias. Como as populações bósnias e sérvias estão completamente misturadas nesta zona, seria inelutável um episódio de guerra, para obter a deslocação de populações que permitissem fixar uma fronteira aceitável. A Croácia obteria com certeza a baía de Kotor, que só foi agregada ao Montenegro em 1918 e continua marcada por uma velha tradição católica. Em suma, o Montenegro voltaria rapidamente às suas fronteiras de meados do século XIX.
A Sérvia ficaria também numa situação paradoxal. Amputada das suas zonas albanesas e bósnias mas aumentada com o território da actual Republika Srpska da Bósnia-Herzegovina e com as zonas sérvias do Norte do Montenegro, ver-se-ia obrigada a gerir o quebra-cabeças da Voivodina. Nesta região autónoma do Norte do país, cerca de vinte diferentes minorias continuam a representar quase 50 por cento da população. Como os húngaros constituem ali a principal comunidade (cerca de 350 000 pessoas), os concelhos de Subotica, Senta e Kanjiza voltariam com certeza a fazer parte da Hungria, a menos que a Voivodina proclamasse a sua independência, tornando-se o único ilhéu de multi-etnicidade nesses Balcãs entregues à loucura…
Tendo em conta que os novos arranjos fronteiriços não poupariam os países que já são membros da União Europeia, a questão das minorias na Grécia não se limitaria aos albaneses. Os muçulmanos – turcos e pomaques – da Trácia ocidental pediriam a sua união, respectivamente, à Turquia e à Bulgária, anulando os Acordos de Lausana de 1923 [
6]. Deveria também ser aberta a questão dos eslavos da Macedónia grega, até agora assunto tabu no Estado helénico. Por seu turno, a Eslovénia obteria por fim satisfação nos conflitos microterritoriais que a opõem à Croácia [7]. Reclamaria a anulação dos plebiscitos de 1918 [8] e alargar-se-ia para a actual Caríntia austríaca, onde continuam a viver minorias eslovenas. Lubliana, devido à sua atitude positiva na gestão dos conflitos regionais, poderia igualmente ficar com uma parte do Friuli italiano, pelo menos com a cidade de Gorizia, actualmente dividida pela fronteira, ou mesmo com a de Trieste (Trst, em esloveno) [9].



Uma ''macedônia'' de povos e reivindicações contraditórias


Essa vasta rectificação das fronteiras descuraria sem dúvida as reivindicações de algumas minorias; com efeito, que destino dar aos goranis do Kosovo, aos rutenos da Eslavónia oriental croata ou aos aromunis da Macedónia, da Albânia e da Grécia? Quanto aos três a quatro milhões de romanis que vivem nos Balcãs ocidentais, estes continuarão a ser o que sempre foram, um povo sem Estado.
Seria pouco provável que tais rectificações pudessem ser feitas sem contestações, as quais causariam conflitos armados de média intensidade. Uma Task Force regional chefiaria as tropas da União Europeia encarregadas de restabelecer a paz. Em contrapartida, as inevitáveis deslocações de populações não deveriam ser vistas como um dano colateral, mas sim como o objectivo central de todo o processo. Seriam supervisionadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), com a colaboração de muitas organizações não governamentais (ONG), e o orçamento da ajuda humanitária de emergência concedida aos Balcãs ocidentais revelar-se-ia muito superior ao desbloqueado durante a crise do tsunami de Dezembro de 2004…
Este cenário pode parecer extravagante, mas estão desde já em aberto vários dossiês, quer se trate do futuro da Bósnia-Herzegovina ou da «questão nacional albanesa». Os defensores da independência do Kosovo sublinham que esta não deverá constituir um precedente, mas isso é apenas um voto piedoso; a resolução desta questão terá o valor de precedente se os portadores de outras reivindicações – nos Balcãs e noutras paragens – assim o considerarem.
A ideia de que as alterações de fronteiras poderão resolver todas as questões nacionais baseia-se numa ilusão fundamental, a de que existiriam fronteiras «justas» pelo facto de serem étnicas. Na realidade, todas as fronteiras – e não apenas nos Balcãs – são criações históricas, resultado de relações de forças políticas e militares. Não há fronteiras «justas», tal como não há fronteiras «naturais».
O uso da palavra «Balcãs» generalizou-se durante o século XIX, com um pesado conteúdo ideológico. Ao mesmo tempo que o Império Otomano, «o doente da Europa», se ia aos poucos desagregando, as reivindicações contraditórias dos diversos povos antes submetidos começaram a chocar umas com as outras. Os «Balcãs» tornaram-se sinónimo de complexidade nacional, de conflitos sem fim, de estilhaçamento e fragmentação. A «balcanização» deu sentido aos Balcãs, tornou-se a mais importante marca identitária desta porção da Europa; o conceito de «Balcãs» foi ideológico antes de ser geográfico. Nesta «salada macedónia» de povos, aspirações e reivindicações contraditórias, as fronteiras foram asperamente disputadas.
A emergência dos Estados e a definição das fronteiras são um relevante fenómeno da entrada dos Balcãs na modernidade política. Estes recém-chegados basearam-se em geral numa concepção nacional do Estado, retomando e adaptando modelos oriundos da particular experiência histórica da Europa Ocidental. A Grécia e a Sérvia, no início do século XIX, basearam-se na limpeza étnica, na expulsão ou assimilação de populações consideradas «alógenas», em particular devido à sua religião; os «turcos» (ou seja, os muçulmanos, tanto os eslavos como os albaneses ou turcófonos) foram expulsos dos novos Estados.
A definição das fronteiras surgiu também como uma forma de ordenar a «confusão» balcânica, de a pôr na ordem europeia ideal, baseada na coincidência entre os povos, as fronteiras e os Estados. A diversidade das identidades linguísticas, «nacionais» e religiosas, que caracterizava os Balcãs otomanos, começou a reduzir-se.
Esse processo acelerou-se durante as guerras jugoslavas do fim do século XX; a presença sérvia foi drasticamente reduzida na Croácia (passando de 12 por cento para cerca de 4 por cento da população total do país), o «mosaico» bósnio foi transformado em amplas zonas mono-étnicas, cada uma delas controlada por uma das três comunidades do país. Nos séculos XIX e XX, os Estados mais poderosos – Áustria-Hungria e Rússia, mas também a França, a Grã-Bretanha e a Itália – lutaram para alargar as suas zonas de influência nos escombros do Império Otomano, apoiando ou mesmo excitando as reivindicações nacionais dos diversos povos balcânicos, sendo as políticas dos Estados revezadas pelos jornalistas ou pelos viajantes que percorriam a região. Na década de 1930, a romancista britânica Rebecca West escarnecia das ideias feitas, «humanitárias e filantrópicas», desses observadores que abraçavam as diversas causas nacionalistas, notando que «os búlgaros dos irmãos Buxton e os albaneses de que Miss Durham se tornou grande defensora, assemelham-se muito ao quadro do infante Samuel pintado por Sir Joshua Reynolds» [
10].

Peões europeus no novo confronto russo-americano


Vários momentos de transição marcaram a progressiva definição das fronteiras. Para começar, 1878. A «grande crise do Oriente» teve um primeiro epílogo com o Tratado de Santo Stefano, que previa a criação de uma «muito grande Bulgária» sob protectorado russo. Essa perspectiva, lesando a Sérvia e a Roménia, provocou um brado de indignação, tendo sido anulada alguns meses depois pelo Congresso de Berlim, que entre outras coisas atribuiu um mandato à Áustria-Hungria sobre a Bósnia-Herzegovina e o Sandjak de Novi Pazar.
As guerras balcânicas de 1912-1913 e, depois, a Primeira Guerra Mundial marcaram o outro momento essencial dessa imensa jogada de póquer territorial. Em 1918, a Sérvia e a Roménia obtiveram enormes gratificações pela sua participação no campo dos Aliados; a dinastia sérvia dos Karadjordjevic pôde criar o seu ceptro, o novo «Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos» (antepassado da Jugoslávia), ao mesmo tempo que Bucareste formava a «Grande Roménia».
Apesar dos princípios wilsonianos proclamados logo a seguir ao primeiro conflito mundial, estes Estados, obviamente, não tinham em conta o direito de os povos disporem de si mesmos e incorporavam um grande número de grupos na situação de minorias nacionais. O Komintern via na Jugoslávia monárquica, na década de 1920, uma nova «prisão dos povos», sendo bem verdade que o Estado centralizado criado sob o ceptro dos Karadjordjevic pouco tinha a ver com os românticos sonhos de unidade dos diversos povos eslavos do Sul, ou «jugoslavos» [
11].
As fronteiras internas da Jugoslávia socialista e federal, delineadas em 1945, foram «o menos pior compromisso possível», nas palavras do principal responsável pela sua definição, o futuro dissidente Milovan Djilas. O sistema jugoslavo baseava-se numa dissociação fundamental da cidadania e da nacionalidade, herdada do pensamento austro-marxista do início do século XX(12). Cada indivíduo era cidadão da república federada onde residia (e da Federação Socialista), ao mesmo tempo que pertencia à comunidade nacional de sua escolha; nos recenseamentos jugoslavos, a declaração de nacionalidade era livre.
A experiência balcânica mostra que as reivindicações dos diversos povos só podem traduzir-se em reivindicações estatais através de conflitos incessantes. No Kosovo, as reivindicações exclusivas e antagonistas de dois povos num mesmo território só podem ter dois tipos de soluções: a vitória de um povo sobre o outro – que inevitavelmente provoca frustrações e desejo de vingança – ou a invenção de novas formas de coexistência política e de co-soberania. O quadro europeu deveria justamente concitar à invenção de novas formas políticas capazes de ultrapassar os conflitos territoriais e fronteiriços.
A intervenção das «grandes potências» é essencial para se compreender a progressiva formação das fronteiras balcânicas. Deste ponto de vista, a história gagueja: a questão do Kosovo tornou-se um peão no vasto braço de ferro mundial que se está a jogar entre a Rússia e os Estados Unidos. Neste combate de titãs, é evidente que os interesses reais dos albaneses, dos sérvios e de todas as populações que vivem no Kosovo podem muito bem ser esquecidos.
Pretender resolver as questões balcânicas através de novas divisões territoriais iniciaria uma medonha espiral. Em vez de novas compartimentações territoriais, já é tempo de imaginar outras respostas a dar às reivindicações dos povos.


Por JEAN-ARNAULT DÉRENS *

* Chefe de redacção do sítio Internet Le Courrier des Balkans; publicou recentemente, com Laurent Geslin, Comprendre les Balkans. Histoire, sociétés, perspectives, Non Lieu, Paris, 2007.
domingo 30 de Março de 2008



Notas
[1] Alexandre Adler, «Pour les Balkans, chirurgie ou homéopathie?», Courrier international, Paris, 12 de Abril de 2001.
[2] Lord David Owen, «Redessiner la carte des Balkans», Le Monde, 21 de Março de 2001.
[3] Arben Xhaferi, «Les États multiethniques ne sont pas une solution», Le Courrier des Balkans, 28 de Abril de 2003, http://balkans.courrier.info/article3009.html.
[4] Em 1991, o presidente sérvio Slobodan Milosevic e o seu homólogo croata Franjo Tudjman aprovaram um plano secreto de divisão da Bósnia.
[5] Ler «Le Sandjak de Novi Pazar, un foyer de tension en Europe du Sud-Est», Le Courrier des Pays de l’Est, n.º 1058, Novembro-Dezembro de 2006, pp. 78-93.
[6] Este tratado, assinado em 24 de Julho de 1923, previa amplas permutas de população entre a Grécia e a Turquia, reconhecendo, ao mesmo tempo, a existência duma minoria «muçulmana» na Trácia ocidental grega.
[7] Estes conflitos têm a ver com o golfo de Piran, onde o traçado da fronteira terrestre determina o acesso da Eslovénia às águas marítimas internacionais, e com a região de Mura.
[8] Que determinaram a pertença à Áustria ou à Eslovénia de territórios fronteiriços contestados.
[9] Lembremos que o Território Livre de Trieste, criado em 1947, só foi dividido em 1954. A zona A, que engloba a própria cidade, coube à Itália; a zona B foi atribuída à Jugoslávia e faz hoje parte da Eslovénia.
[10] Rebecca West, Agneau noir et faucon gris. Un voyage à travers la Yougoslavie, L’Âge d’homme, Lausana, 2001.
[11] A ideia jugoslava começou por ser desenvolvida por intelectuais croatas como Ljudevit Gaj (1809-1872) ou o bispo Josip Strossmayer (1815-1905).