terça-feira, 11 de agosto de 2009

EFEITO DOMINÓ DA EVENTUAL INDEPENDÊNCIA DO KOSOVO


A caixa de Pandora das fronteiras balcânicas


Com a questão do estatuto do Kosovo e o impasse político na Bósnia-Herzegovina, parecem estar reunidos todos os elementos de uma nova crise regional, uma crise que pune o fracasso das políticas conduzidas desde há quinze anos pela «comunidade internacional». Neste contexto deletério, volta a surgir a velha ideia de redefinir as fronteiras dos Balcãs. Numa altura em que os povos, as minorias e as reivindicações se misturam, uma tal abordagem poderá mergulhar a região no caos.


A provável independência do Kosovo poderá vir a ter pesadas consequências regionais. Para os sérvios da Bósnia-Herzegovina, que também reivindicam o direito à secessão de um Estado que nunca verdadeiramente funcionou, ela será um precedente. E poderá também provocar uma vaga de desestabilizações em cadeia, nomeadamente na Macedónia e no Montenegro, com o risco de pôr em causa todas as actuais fronteiras dos Balcãs.
Serão porém estas fronteiras um tabu ultrapassável, como cada vez mais «peritos » e diplomatas sugerem em voz alta? As guerras da década de 1990 foram desencadeadas em nome dos «grandes» Estados, da «Grande Sérvia» ou da «Grande Croácia». E por trás da reivindicação de independência do Kosovo perfila-se o espectro da «Grande Albânia»… Terá então chegado o tempo de se proceder a uma revisão de todas as reivindicações territoriais e de se definirem novas fronteiras – que por fim serão «justas» por coincidirem com a divisão étnica das populações? Será preciso que o mapa dos Balcãs seja redesenhado para garantir finalmente uma paz duradoura a esta região e, por conseguinte, a toda a Europa? A ideia, já antiga, ressurge regularmente.
Em 2001, durante o conflito da Macedónia, o editorialista Alexandre Adler propôs que se empregasse «a cirurgia de preferência à homeopatia» [
1] e que se encarasse a divisão desta república pós-jugoslava em regiões albanesas e macedónias. Nesse mesmo ano, lorde David Owen, antigo co-presidente da Conferência Internacional sobre a ex-Jugoslávia, propôs também um plano de redefinição das fronteiras balcânicas [2]. Fazendo-se eco a essas propostas, Arben Xhaferi, figura histórica do nacionalismo albanês na Macedónia, reclamou a criação de Estados «étnicos» [3].
Perante a constatação do malogro das negociações sobre o futuro do Kosovo e a impossibilidade dum compromisso sérvio-albanês, voltou à superfície a ideia duma divisão da província, que a «comunidade internacional» durante muito tempo considerara tabu. Wolfgang Ischinger, diplomata alemão representante da União Europeia na «troika diplomática» (um americano, um europeu, um russo) encarregada de levar a cabo as negociações sobre o Kosovo, declarou em Agosto de 2007 que não devia ser posta de lado nenhuma opção resultante de um acordo entre as partes implicadas; se Belgrado e Pristina conseguissem entender-se a respeito de uma divisão do Kosovo, a União Europeia deveria limitar-se a aprovar essa cisão…
A ideia tem a seu favor todas as aparências do bom senso: se determinadas populações não querem viver juntas, mais vale separá-las, podendo-se, se necessário, encarar deslocações «limitadas» de pessoas para fazer coincidir as novas fronteiras com a divisão étnica das comunidades… Mas imaginemos um instante que os planos dos aprendizes de feiticeiros se concretizam, que uma conferência internacional torna possível um novo traçado, pacificamente negociado, das fronteiras dos Balcãs ocidentais assentes em bases étnicas. Seria necessário, obviamente, prever uma unificação de todas as regiões onde os albaneses são maioritários, ou seja, a Albânia, o Kosovo, um quarto do Noroeste da Macedónia, mas também o vale de Presevo, no Sul da Sérvia, e as franjas orientais do Montenegro.
Nesse caso, a Macedónia, terrivelmente amputada, seria apenas um Estado dependente, a não ser que as correntes pró-búlgaras levassem a melhor e que o país se unisse ao seu vizinho oriental. A questão das minorias na Albânia não deixaria de ser levantada; os gregos do Sul do país poderiam reclamar a sua união à Grécia; e os albaneses expulsos depois de 1945 do Epiro do Norte, zona grega (região a que os albaneses chamam Cameria), não se esqueceriam de lembrar os seus direitos espezinhados. O Montenegro poderia reclamar compensações na região de Shkodra, onde continuam a viver minorias sérvio-montenegrinas, e a Macedónia reclamaria a agregação das aldeias eslavas em redor dos lagos de Ohrid e de Prespa.
Naturalmente, os sérvios da Bósnia-Herzegovina unir-se-iam à «mãe pátria», o que representaria o fim da Bósnia, tanto mais que os croatas da Herzegovina ocidental, da Bósnia central e de Bosanka Posavina (Orasje, Odzak) se uniriam à Croácia. Restaria pois, no máximo, um «micro-Estado» muçulmano-bósnio, concentrado à volta de Sarajevo, Zenica e Tuzla. E realizar-se-ia assim, em suma, o famoso plano de divisão da Bósnia-Herzegovina, esboçado em 1991 por Franjo Tudjman e Slobodan Milosevic [
4]. É claro que a Bósnia se agarraria à defesa do enclave oriental de Gorazde e reclamaria a união do Sandjak de Novi Pazar, actualmente dividido entre a Sérvia e o Montenegro [5].
Obviamente, o Estado montenegrino não subsistiria nas suas fronteiras actuais. Além da secessão das regiões albanesas e bósnias, teria de afrontar a secessão das regiões sérvias. Como as populações bósnias e sérvias estão completamente misturadas nesta zona, seria inelutável um episódio de guerra, para obter a deslocação de populações que permitissem fixar uma fronteira aceitável. A Croácia obteria com certeza a baía de Kotor, que só foi agregada ao Montenegro em 1918 e continua marcada por uma velha tradição católica. Em suma, o Montenegro voltaria rapidamente às suas fronteiras de meados do século XIX.
A Sérvia ficaria também numa situação paradoxal. Amputada das suas zonas albanesas e bósnias mas aumentada com o território da actual Republika Srpska da Bósnia-Herzegovina e com as zonas sérvias do Norte do Montenegro, ver-se-ia obrigada a gerir o quebra-cabeças da Voivodina. Nesta região autónoma do Norte do país, cerca de vinte diferentes minorias continuam a representar quase 50 por cento da população. Como os húngaros constituem ali a principal comunidade (cerca de 350 000 pessoas), os concelhos de Subotica, Senta e Kanjiza voltariam com certeza a fazer parte da Hungria, a menos que a Voivodina proclamasse a sua independência, tornando-se o único ilhéu de multi-etnicidade nesses Balcãs entregues à loucura…
Tendo em conta que os novos arranjos fronteiriços não poupariam os países que já são membros da União Europeia, a questão das minorias na Grécia não se limitaria aos albaneses. Os muçulmanos – turcos e pomaques – da Trácia ocidental pediriam a sua união, respectivamente, à Turquia e à Bulgária, anulando os Acordos de Lausana de 1923 [
6]. Deveria também ser aberta a questão dos eslavos da Macedónia grega, até agora assunto tabu no Estado helénico. Por seu turno, a Eslovénia obteria por fim satisfação nos conflitos microterritoriais que a opõem à Croácia [7]. Reclamaria a anulação dos plebiscitos de 1918 [8] e alargar-se-ia para a actual Caríntia austríaca, onde continuam a viver minorias eslovenas. Lubliana, devido à sua atitude positiva na gestão dos conflitos regionais, poderia igualmente ficar com uma parte do Friuli italiano, pelo menos com a cidade de Gorizia, actualmente dividida pela fronteira, ou mesmo com a de Trieste (Trst, em esloveno) [9].



Uma ''macedônia'' de povos e reivindicações contraditórias


Essa vasta rectificação das fronteiras descuraria sem dúvida as reivindicações de algumas minorias; com efeito, que destino dar aos goranis do Kosovo, aos rutenos da Eslavónia oriental croata ou aos aromunis da Macedónia, da Albânia e da Grécia? Quanto aos três a quatro milhões de romanis que vivem nos Balcãs ocidentais, estes continuarão a ser o que sempre foram, um povo sem Estado.
Seria pouco provável que tais rectificações pudessem ser feitas sem contestações, as quais causariam conflitos armados de média intensidade. Uma Task Force regional chefiaria as tropas da União Europeia encarregadas de restabelecer a paz. Em contrapartida, as inevitáveis deslocações de populações não deveriam ser vistas como um dano colateral, mas sim como o objectivo central de todo o processo. Seriam supervisionadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), com a colaboração de muitas organizações não governamentais (ONG), e o orçamento da ajuda humanitária de emergência concedida aos Balcãs ocidentais revelar-se-ia muito superior ao desbloqueado durante a crise do tsunami de Dezembro de 2004…
Este cenário pode parecer extravagante, mas estão desde já em aberto vários dossiês, quer se trate do futuro da Bósnia-Herzegovina ou da «questão nacional albanesa». Os defensores da independência do Kosovo sublinham que esta não deverá constituir um precedente, mas isso é apenas um voto piedoso; a resolução desta questão terá o valor de precedente se os portadores de outras reivindicações – nos Balcãs e noutras paragens – assim o considerarem.
A ideia de que as alterações de fronteiras poderão resolver todas as questões nacionais baseia-se numa ilusão fundamental, a de que existiriam fronteiras «justas» pelo facto de serem étnicas. Na realidade, todas as fronteiras – e não apenas nos Balcãs – são criações históricas, resultado de relações de forças políticas e militares. Não há fronteiras «justas», tal como não há fronteiras «naturais».
O uso da palavra «Balcãs» generalizou-se durante o século XIX, com um pesado conteúdo ideológico. Ao mesmo tempo que o Império Otomano, «o doente da Europa», se ia aos poucos desagregando, as reivindicações contraditórias dos diversos povos antes submetidos começaram a chocar umas com as outras. Os «Balcãs» tornaram-se sinónimo de complexidade nacional, de conflitos sem fim, de estilhaçamento e fragmentação. A «balcanização» deu sentido aos Balcãs, tornou-se a mais importante marca identitária desta porção da Europa; o conceito de «Balcãs» foi ideológico antes de ser geográfico. Nesta «salada macedónia» de povos, aspirações e reivindicações contraditórias, as fronteiras foram asperamente disputadas.
A emergência dos Estados e a definição das fronteiras são um relevante fenómeno da entrada dos Balcãs na modernidade política. Estes recém-chegados basearam-se em geral numa concepção nacional do Estado, retomando e adaptando modelos oriundos da particular experiência histórica da Europa Ocidental. A Grécia e a Sérvia, no início do século XIX, basearam-se na limpeza étnica, na expulsão ou assimilação de populações consideradas «alógenas», em particular devido à sua religião; os «turcos» (ou seja, os muçulmanos, tanto os eslavos como os albaneses ou turcófonos) foram expulsos dos novos Estados.
A definição das fronteiras surgiu também como uma forma de ordenar a «confusão» balcânica, de a pôr na ordem europeia ideal, baseada na coincidência entre os povos, as fronteiras e os Estados. A diversidade das identidades linguísticas, «nacionais» e religiosas, que caracterizava os Balcãs otomanos, começou a reduzir-se.
Esse processo acelerou-se durante as guerras jugoslavas do fim do século XX; a presença sérvia foi drasticamente reduzida na Croácia (passando de 12 por cento para cerca de 4 por cento da população total do país), o «mosaico» bósnio foi transformado em amplas zonas mono-étnicas, cada uma delas controlada por uma das três comunidades do país. Nos séculos XIX e XX, os Estados mais poderosos – Áustria-Hungria e Rússia, mas também a França, a Grã-Bretanha e a Itália – lutaram para alargar as suas zonas de influência nos escombros do Império Otomano, apoiando ou mesmo excitando as reivindicações nacionais dos diversos povos balcânicos, sendo as políticas dos Estados revezadas pelos jornalistas ou pelos viajantes que percorriam a região. Na década de 1930, a romancista britânica Rebecca West escarnecia das ideias feitas, «humanitárias e filantrópicas», desses observadores que abraçavam as diversas causas nacionalistas, notando que «os búlgaros dos irmãos Buxton e os albaneses de que Miss Durham se tornou grande defensora, assemelham-se muito ao quadro do infante Samuel pintado por Sir Joshua Reynolds» [
10].

Peões europeus no novo confronto russo-americano


Vários momentos de transição marcaram a progressiva definição das fronteiras. Para começar, 1878. A «grande crise do Oriente» teve um primeiro epílogo com o Tratado de Santo Stefano, que previa a criação de uma «muito grande Bulgária» sob protectorado russo. Essa perspectiva, lesando a Sérvia e a Roménia, provocou um brado de indignação, tendo sido anulada alguns meses depois pelo Congresso de Berlim, que entre outras coisas atribuiu um mandato à Áustria-Hungria sobre a Bósnia-Herzegovina e o Sandjak de Novi Pazar.
As guerras balcânicas de 1912-1913 e, depois, a Primeira Guerra Mundial marcaram o outro momento essencial dessa imensa jogada de póquer territorial. Em 1918, a Sérvia e a Roménia obtiveram enormes gratificações pela sua participação no campo dos Aliados; a dinastia sérvia dos Karadjordjevic pôde criar o seu ceptro, o novo «Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos» (antepassado da Jugoslávia), ao mesmo tempo que Bucareste formava a «Grande Roménia».
Apesar dos princípios wilsonianos proclamados logo a seguir ao primeiro conflito mundial, estes Estados, obviamente, não tinham em conta o direito de os povos disporem de si mesmos e incorporavam um grande número de grupos na situação de minorias nacionais. O Komintern via na Jugoslávia monárquica, na década de 1920, uma nova «prisão dos povos», sendo bem verdade que o Estado centralizado criado sob o ceptro dos Karadjordjevic pouco tinha a ver com os românticos sonhos de unidade dos diversos povos eslavos do Sul, ou «jugoslavos» [
11].
As fronteiras internas da Jugoslávia socialista e federal, delineadas em 1945, foram «o menos pior compromisso possível», nas palavras do principal responsável pela sua definição, o futuro dissidente Milovan Djilas. O sistema jugoslavo baseava-se numa dissociação fundamental da cidadania e da nacionalidade, herdada do pensamento austro-marxista do início do século XX(12). Cada indivíduo era cidadão da república federada onde residia (e da Federação Socialista), ao mesmo tempo que pertencia à comunidade nacional de sua escolha; nos recenseamentos jugoslavos, a declaração de nacionalidade era livre.
A experiência balcânica mostra que as reivindicações dos diversos povos só podem traduzir-se em reivindicações estatais através de conflitos incessantes. No Kosovo, as reivindicações exclusivas e antagonistas de dois povos num mesmo território só podem ter dois tipos de soluções: a vitória de um povo sobre o outro – que inevitavelmente provoca frustrações e desejo de vingança – ou a invenção de novas formas de coexistência política e de co-soberania. O quadro europeu deveria justamente concitar à invenção de novas formas políticas capazes de ultrapassar os conflitos territoriais e fronteiriços.
A intervenção das «grandes potências» é essencial para se compreender a progressiva formação das fronteiras balcânicas. Deste ponto de vista, a história gagueja: a questão do Kosovo tornou-se um peão no vasto braço de ferro mundial que se está a jogar entre a Rússia e os Estados Unidos. Neste combate de titãs, é evidente que os interesses reais dos albaneses, dos sérvios e de todas as populações que vivem no Kosovo podem muito bem ser esquecidos.
Pretender resolver as questões balcânicas através de novas divisões territoriais iniciaria uma medonha espiral. Em vez de novas compartimentações territoriais, já é tempo de imaginar outras respostas a dar às reivindicações dos povos.


Por JEAN-ARNAULT DÉRENS *

* Chefe de redacção do sítio Internet Le Courrier des Balkans; publicou recentemente, com Laurent Geslin, Comprendre les Balkans. Histoire, sociétés, perspectives, Non Lieu, Paris, 2007.
domingo 30 de Março de 2008



Notas
[1] Alexandre Adler, «Pour les Balkans, chirurgie ou homéopathie?», Courrier international, Paris, 12 de Abril de 2001.
[2] Lord David Owen, «Redessiner la carte des Balkans», Le Monde, 21 de Março de 2001.
[3] Arben Xhaferi, «Les États multiethniques ne sont pas une solution», Le Courrier des Balkans, 28 de Abril de 2003, http://balkans.courrier.info/article3009.html.
[4] Em 1991, o presidente sérvio Slobodan Milosevic e o seu homólogo croata Franjo Tudjman aprovaram um plano secreto de divisão da Bósnia.
[5] Ler «Le Sandjak de Novi Pazar, un foyer de tension en Europe du Sud-Est», Le Courrier des Pays de l’Est, n.º 1058, Novembro-Dezembro de 2006, pp. 78-93.
[6] Este tratado, assinado em 24 de Julho de 1923, previa amplas permutas de população entre a Grécia e a Turquia, reconhecendo, ao mesmo tempo, a existência duma minoria «muçulmana» na Trácia ocidental grega.
[7] Estes conflitos têm a ver com o golfo de Piran, onde o traçado da fronteira terrestre determina o acesso da Eslovénia às águas marítimas internacionais, e com a região de Mura.
[8] Que determinaram a pertença à Áustria ou à Eslovénia de territórios fronteiriços contestados.
[9] Lembremos que o Território Livre de Trieste, criado em 1947, só foi dividido em 1954. A zona A, que engloba a própria cidade, coube à Itália; a zona B foi atribuída à Jugoslávia e faz hoje parte da Eslovénia.
[10] Rebecca West, Agneau noir et faucon gris. Un voyage à travers la Yougoslavie, L’Âge d’homme, Lausana, 2001.
[11] A ideia jugoslava começou por ser desenvolvida por intelectuais croatas como Ljudevit Gaj (1809-1872) ou o bispo Josip Strossmayer (1815-1905).

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