terça-feira, 11 de agosto de 2009

BALCÃS - OS POVOS ESQUECIDOS

Pequenas comunidades, formadas de várias etnias, são as vítimas desconhecidas das guerras dos Bálcãs, que opunham “grandes nacionalismos” e hoje esmagam as minorias que não se “encaixam” no modelo de Estado-nação ocidental


terça-feira 1º de julho de 2003


Os cidadãos bósnios nascidos de casamentos mistos, isto é, cujos pais pertenciam a comunidades diferentes, estavam entre as primeiras vítimas da guerra




“Como se pode ser croata?”, perguntava Alain Finkielkraut1 há cerca de dez anos. Seria mais adequado perguntar: como se pode ser galiciano, torbese, valáquio, ruteno ou cigano? A década de guerras iugoslavas chegou ao fim com centenas de milhares de mortos, milhões de refugiados e apátridas, e sempre, desde a guerra da Croácia até o conflito da Macedônia, os “pequenos povos” aparecem como vítimas esquecidas, esmagadas no confronto entre os “grandes” nacionalismos.
A primeira guerra iugoslava, no verão e outono de 1991, teve como saldo uma pavorosa carnificina na Eslavônia croata. O conflito opunha os independentistas croatas aos sérvios da Croácia que haviam lutado pela separação da Croácia quando esta caminhava para a independência. Os sérvios receberam o apoio decisivo do Exército Popular Iugoslavo (JNA), que se deixou manipular pelo nacionalismo sérvio. No entanto, sérvios e croatas não foram as únicas vítimas dos confrontos.
A uns 10 quilômetros de Vukovar, Petrovci era um rico vilarejo agrícola. Antes da guerra, de 200 a 300 sérvios ali viviam em paz, ao lado de mais ou menos o mesmo número de croatas e de perto de mil rutenos e ucranianos. Os rutenos são ucranianos do Oeste, originários de regiões que fizeram parte do império austro-húngaro e não das possessões russas, como a Bukovine ou a Rutênia subcarpática. Rutenos e ucranianos chegaram aos Bálcãs na metade do século XVIII, sob o reinado da imperatriz Maria Teresa da Áustria, na condição de colonos agrícolas encarregados de repovoar e de valorizar as terras libertadas dos turcos. Do ponto de vista confessional, os rutenos são uniatas ou “católicos gregos”: reconhecem a autoridade do papa, ao mesmo tempo em que conservam a liturgia oriental.

Comunidades cindidas
Quando a guerra atingiu Vukovar, alguns rutenos de Petrovci alistaram-se nas forças croatas. Outros fizeram com que entrassem víveres na cidade sitiada pelas tropas sérvias. Quando os sérvios ocuparam a região, esses rutenos pró-croatas tomaram o caminho do exílio em companhia dos croatas. Durante mais de seis anos, Petrovci fez parte da “República sérvia da Eslavônia oriental, Srem e Baranja”. Dezenas de jovens rutenos do vilarejo fizeram o serviço militar obrigatório nas forças sérvias. Em janeiro de 1998, os acordos adicionais de Erdut homologaram a restauração progressiva da soberania croata sobre a região2. Foi a vez de os rutenos mais ligados ao poder sérvio tomarem o caminho do exílio, indo majoritariamente para a Voivodine sérvia, onde viviam comunidades rutenas muito importantes. Os “rutenos pró-croatas” voltaram e, atualmente, ocupam posições de destaque em Petrovci. O pároco uniata de Vinkovci só pode constatar as terríveis rupturas entre a comunidade rutena do vilarejo, dividida por confrontos nacionalistas que, a priori, quase não lhe diziam respeito.
A afirmação dos nacionalismos obriga as pequenas comunidades a “escolherem um lado”, numa guerra que a priori não é sua
Todas as guerras iugoslavas poderiam fornecer dezenas de histórias desse tipo. A afirmação dos nacionalismos obriga as pequenas comunidades a “escolherem um lado”. Aliás, a primeira pressão se exerce sobre os indivíduos que, em virtude de sua história pessoal e familiar ou por oposição ideológica, não se reconhecem nos nacionalismos em conflito. Os cidadãos bósnios nascidos de casamentos mistos, isto é, cujos pais pertenciam a comunidades diferentes, estavam entre as primeiras vítimas da guerra. Os territórios controlados pelo governo de Sarajevo durante o conflito ofereciam-lhes um pouco mais de segurança, pois a Bósnia era oficialmente defendida em nome de seu caráter multiétnico. Entretanto, mesmo em Sarajevo, as lógicas de homogeneização nacional, incentivadas pelo Partido Nacionalista Muçulmano (SDA), no poder, e amplamente retomadas por uma sociedade traumatizada pela guerra, acabaram totalmente com o sonho de coexistência multinacional. A guerra do Kosovo oferece outros exemplos trágicos dessa lógica de homogeneização. O nacionalismo albanês buscava apresentar a situação no Kosovo como um conflito entre o poder sérvio e a sociedade civil albanesa. Essa apresentação se esquecia de que no Kosovo também existiam civis sérvios, bem como numerosos representantes das comunidades menores. Segundo o censo de 1981, os turcos, os ciganos, os galicianos, os bósnios e os croatas representavam, juntos, mais de 10% da população total do Kosovo
3
.

Renúncia à identidade
Depois da instauração do protetorado internacional sobre o território, em junho de 1999, todas essas comunidades encontraram-se na mira do nacionalismo albanês. Os ciganos e os “egípcios4” foram acusados, coletivamente, de cumplicidade com o regime sérvio e, por essa razão, foram vítimas de uma “limpeza étnica” sistemática. Os turcos, por sua vez, foram obrigados a se albanizar. Trilíngües de modo geral, os turcos do Kosovo dominam o turco, o albanês e o sérvio. Para poder permanecer no Kosovo, freqüentemente tiveram que renunciar à sua identidade específica e se declarar albaneses. Do mesmo modo que os turcos, um outro grupo aparentado aos ciganos, os Ashkalli, de língua albanesa, se esforçou por aumentar o patriotismo albanês com o objetivo de ser tolerado pela sociedade albanesa. Nem por isso deixou de ser vítima de inúmeros atos de violência.


O protetorado internacional mostrou-se incapaz de garantir o respeito elementar dos direitos lingüísticos, culturais e educacionais


Os bósnios e os croatas que falam o servo-croata foram assimilados aos sérvios por razões lingüísticas, bem como os galicianos, um pequeno povo que vive nas montanhas do extremo sul do Kosovo, muçulmano e que fala uma língua eslava próxima do macedônio. O protetorado internacional mostrou-se, até o presente, incapaz de garantir o respeito elementar dos direitos dessas comunidades, principalmente de seus direitos lingüísticos, culturais e educacionais5.
Os “pequenos povos” do Kosovo sentem, com razão, que foram manipulados por todos lados. Quando das negociações de Rambouillet, em fevereiro de 1999, Slobodan Milosevic teve a habilidade de incluir na delegação iugoslava vários representantes dessas pequenas comunidades que, por isso, ficaram desacreditadas não só diante dos albaneses, como também da comunidade internacional. A lógica que prevaleceu em Kosovo repetiu-se na Macedônia, onde o mosaico étnico, confessional e lingüístico é particularmente complexo. Desde os primeiros combates entre as forças macedônias e a guerrilha albanesa, em fevereiro de 2001, o diálogo político facilitado pela comunidade internacional reduziu-se a um face-a-face entre representantes macedônios e albaneses, “esquecendo” os turcos, os ciganos, os sérvios, os valáquios e os macedônios muçulmanos, chamados de torbeses6.


Guerras de homogeneização
Durante o conflito, foram criados mecanismos que reduziam a complexidade social a um confronto entre dois “grandes” nacionalismos, bem como uma assimilação dos pequenos grupos a esses “grandes” nacionalismos. Os sérvios e os valáquios ortodoxos7 identificam-se, naturalmente, com os macedônios, ao passo que o caso dos torbeses é mais complexo. De língua macedônia, são rejeitados pelo nacionalismo albanês, enquanto as manifestações extremistas do nacionalismo macedônio se opõem a tudo o que representa o islã. Mesquitas freqüentadas essencialmente por turcos ou por torbeses, por exemplo, foram destruídas por manifestantes em Prilep, em junho de 2001. Há muito tempo, na Macedônia, as estruturas oficiais do islã, dominadas por albaneses, haviam feito uma campanha de albanização das comunidades muçulmanas não albanesas, essencialmente os turcos e os torbeses, que representam, respectivamente, 4% e 3% da população do país8. Uma deterioração da situação política obrigaria essas comunidades não só a escolherem a que lado aderir, mas também a renunciarem a uma boa parte de sua identidade.
As divisões políticas e as guerras que ensangüentaram os Bálcãs desembocaram num movimento de homogeneização nacional


As divisões políticas e as guerras que ensangüentaram os Bálcãs há uma década desembocaram então, em toda parte, num movimento de homogeneização nacional.


Para retomar uma metáfora utilizada com freqüência a respeito da Europa central a partir de 1918, passa-se de um mosaico complexo ou de um quadro detalhista em que mil cores se misturam a um afresco que só mostra amplas camadas de algumas cores. Essa homogeneização nacional seria inevitável? As guerras iugoslavas deveriam terminar com a emergência de Estados nacionais monoétnicos, em que só subsistiriam raras minorias nacionais com seus direitos garantidos e controlados por organismos internacionais?
O próprio vocabulário multiplica as armadilhas. É importante ser preciso com o sentido das palavras. Povos, nações, minorias, Estados nacionais: de que se está falando? Para o senso comum ocidental, que detesta os conflitos “interétnicos”, as etnias representariam algo inferior ou anterior às nações, num esquema supostamente linear do desenvolvimento social. Em 1991, o presidente François Mitterrand abriu um seminário intitulado “A Europa e as tribos”. Etnias, tribos: esse vocabulário coloca os Bálcãs do lado de uma “selvageria” ou de um “primitivismo” que não poderiam ser europeus.

A difícil definição de minoria
O sistema iugoslavo fazia uma distinção entre os “povos constitutivos” da Federação e de uma ou de várias das repúblicas federadas – os sérvios, os croatas, os eslovenos, os macedônios, os montenegrinos e, a partir do fim da década de 60, os muçulmanos, estes entendidos no sentido nacional de eslavos muçulmanos da Bósnia e do Sandjak de Novi Pazar – e as minorias nacionais ou nacionalidades que não dispunham de um “lar nacional” numa das repúblicas federadas. Os povos alógenos – isto é, minorias dispondo de um Estado de referência fora da Iugoslávia – também eram “minorias nacionais”, independentemente de sua importância numérica e quer se tratasse dos italianos da Istria, dos húngaros de Voivodine ou dos albaneses.
As minorias disporiam apenas de direitos “concedidos” pela maioria e sempre passíveis de revogação
A definição do termo “minoria” era, pois, estritamente jurídica e não demográfica. Dentro de configurações geográficas dadas – uma cidade, uma região – essa ou aquela minoria poderia ser demograficamente majoritária, sem que isso influísse sobre seu status. Dessa maneira, os albaneses do Kosovo indignavam-se com o status de minoria por causa de seu caráter nitidamente majoritário no interior da província autônoma do Kosovo; porém, eles eram certamente minoritários em relação à República da Sérvia, da qual o Kosovo fazia parte. Depois da instauração do protetorado internacional sobre esta república, foi a vez de os sérvios se recusarem a ser tratados como uma minoria. Além do problema de escala: qual levar em conta? O Kosovo, como querem os albaneses? A Sérvia ou a Iugoslávia, como querem os sérvios? A noção de minoria soa mal aos ouvidos balcânicos, apesar de todas as promessas de garantias internacionais.


Busca da legitimidade de Estado
As minorias disporiam apenas de direitos “concedidos” pela maioria e sempre passíveis de revogação. Desse modo, a noção de minoria é concebida na linha direta daquela do milet, a comunidade protegida da época otomana. Ademais, as minorias não são titulares de uma legitimidade de Estado. Ora, o objetivo de todos os nacionalismos dos Bálcãs consiste de fato em criar ou em defender um Estado, definido sobre uma base “nacional” ou “étnica”, isto é, que tem sua legitimidade baseada num sentimento popular de pertencimento a uma mesma entidade geográfica, política e cultural.
Mas o que é uma nação, ou o que é um povo nos Bálcãs? Os critérios “objetivos” comumente reconhecidos – a língua, o pertencimento confessional etc. – se misturam segundo combinações sempre variáveis. Se o pertencimento confessional representa a barreira mais evidente entre os sérvios ortodoxos e os croatas católicos, os albaneses, em compensação, formam um só povo, mas se dividem entre muçulmanos, ortodoxos e católicos.
É importante retomar o passado otomano. A Porta Sublime não reconhecia a existência de grupos nacionais, mas somente a de grupos confessionais, “protegidos” pelo sultão e que dispunham de estruturas de auto-administração no quadro dos milets. As nações modernas constituíram-se sobre essa base. Esse ancoramento confessional das comunidades explica o caráter nacional de que se revestiram as igrejas ortodoxas. Essa deriva étnica das igrejas ortodoxas foi, no entanto, denunciada sob o nome de heresia etnofilética pela teologia oriental desde o segundo concílio de Constantinopla, em 1872
9.


Diversidade sufocada
Os novos Estados, cujas elites freqüentemente se formam em Paris, Viena ou Berlim, tomam como modelo os Estados-näção ocidentais

Esses milets poderiam ser reduzidos a estruturas protonacionais? Durante séculos, as populações dos Bálcãs viveram em sociedades compósitas e a identidade de cada indivíduo se definia segundo um espectro de elementos variáveis. O pertencimento confessional era, em toda parte, um critério importante, assim como o pertencimento social ou profissional. As línguas faladas eram múltiplas: a uma língua litúrgica - o árabe para os muçulmanos, o grego ou o eslavão para os ortodoxos - acrescentavam-se a língua da administração, o turco, uma ou várias línguas de negócios, com freqüência o grego, e enfim a língua materna que, muitas vezes, variava de uma cidade ou de uma microrregião para outra. Esse plurilingüismo foi diretamente atacado pelos nacionalismos modernos que codificaram e impuseram o uso de línguas que se tornaram nacionais. De um modo geral, esse espectro de identidades se reduziria à medida que se afirmassem os nacionalismos modernos, portadores de um projeto estatal e de reivindicações territoriais.
Os novos Estados, cujas elites freqüentemente se formam em Paris, Viena ou Berlim, iriam, deliberadamente, tomar como modelo os Estados-nação ocidentais, aceitando uma definição estritamente étnica da nação, bem como supondo uma comunidade confessional e a homogeneização de uma língua nacional. Esses novos Estados, num esforço suplementar, iriam então criar nações e reduzir o espectro de identidades a alguns parâmetros que definiriam a “identidade nacional”. As populações hostis a esse novo modelo, na maioria das vezes muçulmanas em razão de sua alteridade religiosa, se tornariam, pois, minorias nacionais.
O aparecimento dessas minorias nacionais é uma conseqüência direta da afirmação dos Estados-nação: enquanto a legitimidade política do Estado não tiver por base critérios étnico-nacionais, a noção de “minoria nacional” não terá sentido. Além disso, as fronteiras dos Estados não podem corresponder aos territórios, amplamente idealizados, das novas nações, acarretando o aparecimento de minorias transfronteiriças. Todas as guerras que afetaram a península balcânica depois de um século e meio – da crise do Oriente de 1878 às guerras balcânicas de 1912-1913, aos dois conflitos mundiais e às guerras iugoslavas de 1991-2001 – podem, pois, ser definidas como tentativas visando a fazer coincidirem as fronteiras dos Estados com os sonhados territórios da nação, e que se traduzem principalmente pelas reivindicações maximalistas de Grande Sérvia, Grande Albânia e Grande Bulgária.


A guerra das identidades
Todas as guerras balcânicas desde o século 19 podem ser definidas como tentativas de fazer coincidirem as fronteiras dos Estados com os sonhados territórios da nação
Os nacionalistas, aliás, sempre preferem esses últimos a fronteiras ditas naturais e, por exemplo, falam de “Albânia étnica” e não de Grande Albânia, esquecendo-se de que os albaneses, há séculos, partilham os territórios em questão com outras comunidades. De fato, os Bálcãs se revelam estreitos demais para acolher todas as reivindicações estatais e territoriais contraditórias, o que acarretou lutas terríveis, ao mesmo tempo em que as identidades hostis ao novo modelo nacional eram esmagadas impiedosamente.
No entanto, outros modelos que não a afirmação de um nacionalismo estatal e territorial eram possíveis. A dispersão geográfica impediu os arromenos de alimentarem quaisquer reivindicações territoriais. Na Macedônia, no fim do século 19, havia entre 69.600 (segundo as estatísticas sérvias de 1889) e 80.700 arromenos (segundo as estatísticas búlgaras de 1900), mas somente 25.100 conforme as estatísticas gregas do ano de 1904
10. Os gregos certamente incluíram muitos arromenos entre os seus, ao passo que sérvios e búlgaros tinham um interesse estratégico evidente em minimizar a parte do elemento grego na Macedônia.
Na vasta Macedônia ainda otomana, os diferentes povos cristãos entregavam-se a uma guerra implacável para determinar a identidade nacional das populações. A escola e o pope
11 – sérvios, gregos ou búlgaros – fixavam com freqüência a identidade ainda flutuante dessas populações, e os governos de Belgrado, de Sofia e de Atenas utilizavam meios eficazes para defender sua causa. Ratificada pelo tratado de Bucareste em 1913, a divisão da Macedônia já se esboçava.

Herança imperial
Ao mesmo tempo em que Milosevic estimulava o nacionalismo sérvio fora das fronteiras do país, a Sérvia se impôs como um dos países mais multiétnicos dos Bálcãs

O modelo otomano era essencialmente imperial: o centro todo-poderoso do poder era o fiador dos equilíbrios sociais. Inversamente, o nacionalismo apareceu como um fenômeno indissociável da democracia política. Até fundou essa democracia, pois que a primeira tarefa dos movimentos de emancipação consiste em definir o quadro de referência em que a democracia será exercida. Não é por acaso que a Sérvia - cujo movimento de emancipação remonta à sublevação de 1804 e cuja autonomia foi reconhecida ainda em 1830 - pode se vangloriar de conhecer uma das mais antigas democracias parlamentares da região. Na Sérvia, a criação de um Estado nacional – com referência explícita no modelo francês – e a democracia política caminharam juntas, marcando os dois aspectos maiores da modernidade política.
O federalismo iugoslavo herdou muito da tradição imperial, misturada com influências vindas da teoria austro-marxista das nacionalidades, que busca dissociar a nacionalidade pessoal do pertencimento territorial12.
Sob o sistema de Tito, a fidelidade de todas as comunidades ao regime era um dado certo em troca de garantias reais de proteção. Durante dez anos, Slobodan Milosevic soube preservar os equilíbrios internos à Sérvia apoiando-se nessa antiga lógica de legitimação ao mesmo tempo em que estimulava o nacionalismo sérvio fora das fronteiras do país. Agindo assim, e esse não é o menor dos paradoxos das guerras iugoslavas, a Sérvia se impôs como um dos países mais multiétnicos dos Bálcãs, com a comunidade bósnia muçulmana do Sandjak de Novi Pazar, a importante população cigana disseminada em todos os países e, sobretudo, o mosaico étnico de Voivodine.
Apesar de alguns casos limitados de violência diretamente imputáveis aos extremistas sérvios de Vojislav Seselj, a coexistência interétnica pôde perdurar em Voivodine, essencialmente porque o poder central não queria agitação com perturbações sociais nessa região, pulmão agrícola e econômico da Sérvia. O exemplo de Voivodine prova claramente que não existe nenhuma espécie de fatalidade das guerras étnicas, que uma sociedade compósita não é, a priori, mais frágil que uma sociedade monoétnica: entrar em guerra resulta da relação que o poder central mantém com as diferentes comunidades.


Etnicização do jogo político
É vital sair de uma abordagem que apresenta o Estado nacional como o único contexto político viável

Em sociedades multiétnicas, com muita freqüência, o pluripartidarismo leva, no entanto, a uma etnicização do jogo político. Um bom exemplo desse fenômeno é o caso da Bósnia. Por ocasião das eleições pluripartidárias de 1990, os três partidos nacionalistas - o Partido da Ação Democrática (SDA, muçulmano), o Partido Democrático Sérvio (SDS) e a União Democrática Croata (HDZ) - obtiveram resultados correspondentes à importância relativa dos grupos que pretendiam representar, ainda que quase um terço dos cidadãos tivessem optado, entretanto, por votar em partidos não nacionais13. Desde então, nenhum projeto político conseguiu se impor transcendendo essas barreiras étnicas.
O modelo de Tito de proteção das identidades se esfacelou junto com a Federação Iugoslava. Os Estados que o sucederam procuraram tirar toda sua legitimidade de seu caráter nacional. Essa evolução foi mais ou menos coroada de êxito no caso da Croácia à custa do êxodo da maior parte da população sérvia dessa república
14. Na Macedônia, a vontade de fundar a legitimidade do Estado com base numa abordagem étnico-nacional quase jogou o país na guerra civil. Paradoxalmente, a Sérvia continua sendo um dos Estados mais multiétnicos da região. A “revolução” democrática de outubro de 2000 recolocou em primeiro plano os interesses em jogo na constituição da Sérvia como Estado-nação.


Risco de mais choque de nacionalismos
A hipótese de uma provável fragmentação da União da Sérvia e Montenegro, última metamorfose da Federação Iugoslava, levará a Sérvia a tornar-se independente. Esta independência a impulsionará a se definir como Estado mononacional ou como sociedade multiétnica? E, de modo geral, será que os Estados balcânicos conseguirão fundar as fontes de sua legitimidade política de outro modo que não sobre bases etnonacionais15?
É vital sair de uma abordagem que apresenta o Estado nacional como o único contexto político viável e que postula que a constituição desse tipo de Estado estaria inserida numa espécie de lei universal de desenvolvimento das sociedades humanas. Se não for assim, novos confrontos territoriais seriam provavelmente inevitáveis, e os “pequenos povos”, as minorias esquecidas pelo choque dos nacionalismos, pagariam mais uma vez por esses conflitos de alto custo.


(Trad.: Iraci D. Poleti)


1 - Ler, de Alain Finkielkraut, Comment peut-on être Croate?, ed. Gallimard, Paris, 1992.

2 - Ler Les conflits yougoslaves de A à Z, ed. L’Atelier, Paris, 2000.

3 - Ler, de Michel Roux, Le Kosovo. Dix clés pour comprendre, ed. La Découverte, Paris, 1999.

4 - Um grupo próximo dos ciganos apareceu, bem recentemente, nas estatísticas de nacionalidades, mas que conserva sua especificidade. Ler, de Jean-Arnault Dérens, “Adieux au Kosovo multiethnique”, em Le Monde diplomatique, fevereiro de 2000.

5 - Ler, de Stanislav Milojkovic, “De l’enseignement des langues au Kosovo”, site du Courrier des Balkans, http://www.balkans.eu.org/article1282.html

6 - Os goranci de Kosovo e os torbesi da Macedônia são bastante próximos dos pomaks da Grécia e da Bulgária.

7 - Os valáquios, ou Tsintsares, ou arromenos, são um povo de língua neolatina, próxima do romeno.

8 - Segundo o censo de 1994, pois os dados definitivos do censo de 2002 ainda não são conhecidos.

9 - O patriarca ecumênico de Constantinopla reagiu, então, ao reconhecimento da autonomia eclesial da igreja búlgara, reconhecida sob a forma de um “exarcado” por um firman imperial de 1870.

10 - Ler, de Georges Castellan, Histoire des Balkans, XIVe-XIXe siècles, ed. Fayard, Paris, 1991. 11 - N.T.: Pastor da Igreja Ortodoxa.

12 - Ler, de Otto Bauer, La social-démocratie et la question des nationalités, Montréal, 1989.

13 - Ler, de Xavier Bougarel, Anatomie d’une poudrière, La Découverte, ed. Paris, 1996.

14 - Ler, de Diane Masson, L’utilisation de la guerre dans la construction des systèmes politiques en Serbie et en Croatie, 1989-1995, ed. L’Harmattan, Paris, 2002.

15 - Ler, de Jean-François Gossiaux, Pouvoirs ethniques dans les Balkans, ed. PUF, Paris, 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário