terça-feira, 11 de agosto de 2009

Região é marcada por divisões históricas


A República do Kosovo, após se separar da Sérvia, é o mais novo país dos Bálcãs
Podemos considerar os Bálcãs uma das regiões mais complicadas da Europa, e isso há muitos séculos. Uma série de conflitos marca a história da região, sendo que o último episódio, a independência de Kosovo (que se separou da Sérvia), em fevereiro de 2008, fez com que, mais uma vez, o mundo voltasse sua atenção para os Bálcãs. A localização geográfica da Península Balcânica nos ajuda a entender muito do processo histórico dessa região: situada no sudeste europeu, essa península é um dos principais caminhos entre a Ásia e a Europa. Ali, as culturas ocidental e oriental - e seus respectivos interesses políticos e econômicos - chocaram-se diversas vezes. Vários países compõem hoje a região: Albânia, Grécia, parte da Turquia na Europa, Romênia, Bulgária, além das repúblicas que compunham a ex-Iugoslávia: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Macedônia, Sérvia e, desde fevereiro de 2008, Kosovo. Vamos nos concentrar na história desses últimos sete países, a ex-Iugoslávia.
Durante a Alta Idade Média, tribos eslavas, vindas da Europa Central, passaram a ocupar os Bálcãs. Essas tribos eram, principalmente, sérvios, croatas e eslovenos; e, a partir do século 7, já ocupavam territórios mais ou menos definidos e organizavam seus próprios governos. Mas é importante lembrar que, desde o século 4, a região tinha sido determinada como marco divisor entre as duas partes do Império Romano. Por isso, no século 9, os sérvios que se localizavam ao leste da região foram convertidos ao cristianismo ortodoxo, sob influência de Constantinopla (Império Bizantino), enquanto os eslovenos e os croatas se converteram à religião católica romana. Assim, apesar de serem povos de mesma origem étnica, os eslavos dos Bálcãs foram se diferenciando. Por exemplo: a Sérvia e a Croácia, apesar de falarem a mesma língua, o servo-croata, adotaram alfabetos diferentes: os sérvios, o alfabeto cirílico; os croatas, o alfabeto latino.Entre os impérios Austro-Húngaro e Turco-Otomano. Entre os séculos 7 e 14 os eslavos dos Bálcãs lutaram para estabelecer suas fronteiras, cabendo aos sérvios a preponderância nesse processo. No século 12, a Eslovênia e a Croácia foram dominadas pela dinastia Habsburgo, do Sacro Império Romano-Germânico(parte do qual viria e se chamar Império Austro-Húngaro séculos depois), enquanto a Sérvia, que fazia parte do Império Bizantino, enfrentou problemas com a expansão turco-otomana na Ásia e Europa, no século 14. Em 1389 os sérvios foram vencidos na Batalha de Kosovo-Polie e dominados pelos turco-otomanos (seguidores da religião islâmica). A região de Kosovo tinha forte significado para os sérvios, pois era sede de seus patriarcas (líderes religiosos da religião ortodoxa). A população sérvia de Kosovo, fugindo do domínio islâmico, se refugiou nas outras regiões eslavas: Croácia e Eslovênia, principalmente, mas também em Voivodina, na Hungria (todas essas regiões faziam parte do Império Habsburgo). A partir de então o domínio islâmico se ampliou nos Bálcãs. Os turcos, sem condições de controlar todos os territórios que dominavam na Ásia e na Europa, estimularam a conversão à fé islâmica, permitindo aos convertidos o direito de fazer parte da administração de seu império. Os sérvios que se converteram passaram a se autodenominar bósnios. Os albaneses convertidos foram estimulados a ocupar Kosovo. Já os sérvios de Montenegro, região protegida por montanhas, conseguiram manter sua autonomia. Essa situação de migração, tanto de refugiados sérvios quanto de albaneses e sérvios islamizados, vai se tornar o principal ponto da luta nacionalista dos séculos 19, 20 e 21.

Da partilha sob os nazistas a Josip Broz Tito
A fundação do Reino da Iugoslávia, em 1929, foi uma tentativa de encobrir e controlar as inúmeras e profundas diferenças da região dos Bálcãs, procurando reunir "os eslavos do sul" num único Estado. Mas essa unificação se mostrou impossível ao longo do tempo, pois os diversos povos da região não esqueceram suas antigas rivalidades. Em 1939, o rei Alexandre 1º (sérvio) foi assassinado por um nacionalista croata, e o príncipe Paulo assumiu como regente. Para complicar a situação, nesse mesmo ano estourou a Segunda Guerra Mundial - e em 1941 o governo da Iugoslávia se rendeu à Alemanha. Não aceitando tal situação, a população se rebelou, principalmente em Belgrado (Sérvia), o que levou a um maciço bombardeio dos alemães sobre a região e à fuga da família real para Londres.

Divisões e Rancores Nacionalistas
O Reino da Iugoslávia foi vencido e seu território dividido entre os países do Eixo. O croata defensor do nazifascismo, Ante Pavelic, passou a governar a Croácia, estabelecendo um governo pró-Alemanha, além de anexar grande parte da Bósnia-Herzegovina. A Eslovênia foi dividida entre alemães e italianos; a Sérvia foi ocupada por alemães; Montenegro, Kosovo, Dalmácia (na Croácia) e parte da Macedônia foram dominadas pela Itália; Voivodina foi entregue à Hungria. Ao mesmo tempo, vários conflitos étnicos varreram a região: sérvios, croatas, albaneses e bósnios aproveitaram a situação e deixaram florescer seus rancores nacionalistas - mais de 1 milhão de pessoas foram assassinadas.Na luta contra a ocupação do Eixo, dois grupos da resistência eslava se destacaram: os "chetniks", liderados pelo sérvio Draza Mihaïlovic, que eram hostis às outras nações eslavas; e os "partisans", do croata
Josip Broz, líder comunista conhecido como Tito, e que tinha como princípio a não exclusão étnica praticada pelos "chetniks".Tito recebeu apoio tanto de soviéticos quanto de ingleses, e dessa forma conseguiu expulsar as tropas do Eixo. Em outubro de 1945, com o final da guerra, a Assembléia recém-formada proclamou o nascimento da República Popular Federativa da Iugoslávia, declarando Tito seu governante e adotando o modelo socialista de governo, com o apoio da URSS.

TITO E A NOVA IUGOSLÁVIA
A República Iugoslava foi formada por 6 repúblicas federativas (Eslovênia, Sérvia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia) e 2 regiões autônomas (Voivodina e Kosovo, na Sérvia), com suas 2 nacionalidades reconhecidas (húngara e albanesa, respectivamente), sendo que cada uma das unidades da federação tinha certa autonomia em seus assuntos internos, inclusive com presidentes próprios.Nessa nova organização política, a Sérvia perdia todo o controle que detinha anteriormente: passava a ser um república como as outras 5 e teria que aceitar a diminuição de seu controle sobre Kosovo e Voivodina.O carisma e a autoridade de Tito garantiram que as rivalidades entre os eslavos ficassem em segundo plano. A repressão do governo a qualquer movimento étnico nacionalista foi violenta. E como só existia um partido, a Liga dos Comunistas da Iugoslávia, a imposição do ideal socialista acima das questões nacionais abrandou as tensões internas.Em plena Guerra Fria, Tito queria para a Iugoslávia um governo socialista diferente da URSS. Nas suas palavras: "Conciliar socialismo e liberdade". Surgiu daí um novo modelo socialista, chamado de titismo. Tal postura acabou levando ao rompimento entre Tito e Stálin(ditador soviético), em 1948. A Iugoslávia passou a ser, então, o único país do Leste Europeu aberto a negociações com o ocidente capitalista, além de liderar, junto com a Índia, a Indonésia e o Egito, o bloco dos países não-alinhados.Os investimentos que começaram a chegar do ocidente, principalmente dos EUA, permitiram a Tito reconstruir seu país, o que foi uma forma de amenizar as discórdias entre os eslavos.A Iugoslávia passou a ser vista como um modelo de regime socialista no mundo. Mas isso só foi possível graças à grande censura exercida pelo titismo. Na realidade, as coisas não estavam bem e iriam piorar depois da morte do grande líder Tito.

O Período pós-Tito
Quando Josip Broz Tito faleceu, em 1980, os nacionalismos eslavos se reacenderam e a unidade política da Iugoslávia só se manteve por mais uma década.Desde 1974, uma forma colegiada de governo havia sido implantada: representantes de cada uma das 6 repúblicas e das 2 regiões autônomas ocupariam o cargo de Chefe do Governo da Iugoslávia por um ano, rotativamente, garantindo a igualdade entre as federações, inclusive ampliando a autonomia de Kosovo e Voivodina. Até 1980, Tito era o líder supremo do país, o que manteve a unidade da Iugoslávia. Mas, depois de sua morte, essa forma colegiada de governo se mostrou ineficaz, pois os governantes nada podiam fazer em tão pouco tempo de mandato. Assim, o poder central foi sendo deixado de lado, ao mesmo tempo em que cresciam os poderes dos presidentes de cada região e os seus respectivos anseios de liberdade.

Problemas econômicos e fim do socialismo
questão nacionalista somava-se a grave situação econômica: em torno de 50% da população iugoslava vivia em extrema pobreza. Em 1980, a inflação era de 40% ao ano. Para tentar contornar esse problema, Tito já havia criado, na década de 1960, um Fundo de Solidariedade, segundo o qual as regiões mais ricas deveriam ajudar as mais pobres. Por exemplo, Kosovo, muito pobre, recebia do Fundo de Solidariedade mais de um milhão de dólares por dia. Por sua vez, a Eslovênia, república mais rica, que se opunha ao Fundo de Solidariedade, aproveitou da crise pós-Tito para iniciar seu processo de independência. Os problemas internos da Iugoslávia se agravaram quando o modelo socialista de governo começou a ruir no Leste Europeu: se o "povo iugoslavo" nunca existiu de fato, agora o socialismo não apresentava mais soluções para os problemas da Iugoslávia. A proposta de transparência política do líder soviético Mikhail Gorbachev, incentivou vários países do Leste Europeu, submetidos a ditaduras socialistas, a lutarem por maior autonomia política. Nesse processo, o sistema de partido único da Iugoslávia se desintegrou. Em 1990 foram realizadas eleições em todas as federações iugoslavas e somente na Sérvia e em Montenegro venceram políticos que defendiam a manutenção da unidade iugoslava.

Slobodan Milosevic e o sonho da Grande Sérvia
A desintegração da Iugoslávia não interessava aos sérvios, já que minorias sérvias se encontravam por toda parte da Iugoslávia. Além disso, se as regiões se separassem, a Sérvia afundaria numa grande crise, pois não teria o apoio econômico da Eslovênia e da Croácia.Dessa forma, o nacionalismo sérvio se reacendeu e encontrou no político seu principal líder. Milosevic ascendeu rapidamente em sua carreira política, ao defender a supremacia da Sérvia dentro da Iugoslávia e ao se colocar contra a independência de Kosovo, região autônoma da Sérvia, cuja maioria da população é de origem albanesa.Desde a década de 1960 Kosovo demonstrava sua insatisfação por estar submetida à Sérvia. Em 1968, estudantes da Universidade de Prístina se rebelaram, mas foram silenciados pela ditadura de Tito. Com a morte do ditador, em 1981 uma nova rebelião de estudantes e operários aconteceu - e, nesse episódio, a população sérvia de Kosovo passou a ser violentamente atacada pelos albaneses. Os sérvios consideram Kosovo o berço de seu povo, pois ali havia sido a sede de todo patriarcado sérvio na Idade Média (os sérvios, tendo se convertido à religião cristã ortodoxa na Idade Média, receberam o direito de ter seu próprio patriarcado, o que significava sua autonomia religiosa e política reconhecida pelo Império Bizantino). A imprensa sérvia noticiou com grande ênfase os massacres dos sérvios em Kosovo, o que fez aumentar o ódio da população sérvia espalhada por toda Iugoslávia. Nas eleições de 1990, enquanto que na Eslovênia e na Croácia políticos democratas chegavam ao poder, Milosevic, na Sérvia, impôs uma emenda constitucional que reintegrava Kosovo e Voivodina (de maioria húngara) ao controle sérvio, determinando inclusive que o ensino do albanês e do húngaro fossem proibidos nas escolas das regiões. As reações a tal atitude dos sérvios não tardariam: a Eslovênia e a Croácia, que nunca aceitaram uma autoridade sérvia, se proclamaram independentes. A Sérvia reagiu violentamente, invadindo seus territórios. Dessa forma, tiveram início dois dos mais terríveis conflitos étnicos na Europa pós-Segunda Guerra: a Guerra da Bósnia e a Guerra de Kosovo.

Conflitos étnicos nos Balcãs
As guerras da Bósnia e de Kosovo
No início de 1991, a Iugoslávia tinha como presidente um sérvio e, segundo o que estabelecia a forma colegiada de governo, que obedecia à sucessão rotativa da presidência, um representante da Croácia deveria substituí-lo. O presidente sérvio, contudo, não aceitou o político croata escolhido, e se manteve na presidência.A Eslovênia, então - manifestando-se contra a Sérvia na questão da sucessão presidencial e a favor da independência de Kosovo (submetida, a partir daquele mesmo ano, novamente à Sérvia), se declarou independente da Iugoslávia, no que foi seguida pela Croácia e pela Macedônia. Como reação, tropas do Exército Federal, composto por soldados da Sérvia e de Montenegro, invadiram as repúblicas da Eslovênia e da Croácia, onde se encontram minorias de origem sérvia.Na Eslovênia, a guerra durou pouco tempo (ficou conhecida como Guerra dos Dez Dias), mas na Croácia a situação foi bem mais complicada, pois a população sérvia da Croácia não aceitou a independência da região e passou a ser armada pelas tropas federais. Ao mesmo tempo, croatas que habitavam a Bósnia-Herzegovina se lançaram na guerra do lado da Croácia.

Guerra da Bósnia
Em março de 1992 foi a vez da Bósnia-Herzegovina também se declarar independente.Slobodan Milosevic, que culpava Josip Broz Tito(um croata) pela situação de crise que a Sérvia vivia, investiu com todas as suas forças contra croatas e bósnios. Sarajevo, capital da Bósnia, foi cercada - e por vários meses os moradores da cidade passaram por situações críticas: o fornecimento de água, eletricidade e aquecimento foi cortado e a ajuda humanitária que chegava até eles não bastava para suprir as carências de toda a população. As tropas federais (melhor seria dizer, da Sérvia) chegaram a ocupar 70% do território bósnio. Nesse conflito, conhecido como Guerra da Bósnia, a limpeza étnica foi um dos principais objetivos. E aqui não existem "mocinhos e bandidos": dos dois lados as atrocidades praticadas foram enormes. Mas como as tropas sérvias eram muito melhor armadas, bósnios e croatas foram os que mais sofreram. Parecia que o mundo assistia impassível ao conflito que dilacerava os Bálcãs. No clima de final de Guerra Fria, a Rússia passava por uma enorme crise, enquanto os EUA, que estavam saindo da Guerra do Golfo(1990-1991), relutavam em participar de mais um conflito. A Europa, acostumada, por anos, à submissão às ordens da OTAN ou do Pacto de Varsóvia, somente impôs um bloqueio econômico à Sérvia. Diante dessa conjuntura, o presidente dos EUA, Bill Clinton, mesmo violando acordos internacionais, começou a armar tropas da Croácia, que acabaram vencendo os sérvios em Krajina. Tal vitória forçou os líderes da Sérvia, da Croácia e da Bósnia a buscarem uma negociação de paz, selada em novembro de 1995: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina e Macedônia seriam países independentes, enquanto a Iugoslávia seria formada por Sérvia (incluindo Kosovo e Voivodina) e Montenegro (que em 1996 se tornou independente).

Guerra no Kosovo
Contudo, mesmo assim, depois de os Bálcãs estarem supostamente em paz, um problema ainda não havia sido resolvido: a questão de Kosovo. Em 1996, os albaneses de Kosovo formaram o Exército de Libertação de Kosovo e passaram a lutar por sua independência. A Sérvia reagiu violentamente a tal manifestação e, em 1996, estourou mais um sério conflito separatista e étnico na região: a Guerra de Kosovo.
Mais uma vez as tropas internacionais tardaram a chegar: depois de muita negociação e bloqueios econômicos, somente em 1999 a OTAN interferiu no conflito - e por 78 dias bombardeou impiedosamente a região. Em média, os países da OTAN gastaram US$ 64 milhões por dia de conflito, o que permite perceber o enorme e moderno aparato bélico usado. Milosevic foi obrigado a se render. Um ano depois, o líder sérvio foi preso e entregue ao Tribunal de Haia, para ser julgado por crimes de guerra e contra a Humanidade. Desde então, Kosovo passou a ser uma região protegida pelas Nações Unidas e pela OTAN (cerca de 28 mil soldados foram deslocados para a província). Até que, em fevereiro de 2008, o governo de Kosovo declarou sua independência, sem que tal atitude tenha sido aceita pela Sérvia.Tal episódio dividiu o mundo. Os EUA e parte da Comunidade Européia apóiam Kosovo, mas a Rússia e a Espanha apóiam a Sérvia, pois temem que o exemplo separatista kosovar estimule grupos separatistas em seus próprios territórios. As peças do xadrez da política internacional estão se movimentando... e a questão ainda não está resolvida.

EFEITO DOMINÓ DA EVENTUAL INDEPENDÊNCIA DO KOSOVO


A caixa de Pandora das fronteiras balcânicas


Com a questão do estatuto do Kosovo e o impasse político na Bósnia-Herzegovina, parecem estar reunidos todos os elementos de uma nova crise regional, uma crise que pune o fracasso das políticas conduzidas desde há quinze anos pela «comunidade internacional». Neste contexto deletério, volta a surgir a velha ideia de redefinir as fronteiras dos Balcãs. Numa altura em que os povos, as minorias e as reivindicações se misturam, uma tal abordagem poderá mergulhar a região no caos.


A provável independência do Kosovo poderá vir a ter pesadas consequências regionais. Para os sérvios da Bósnia-Herzegovina, que também reivindicam o direito à secessão de um Estado que nunca verdadeiramente funcionou, ela será um precedente. E poderá também provocar uma vaga de desestabilizações em cadeia, nomeadamente na Macedónia e no Montenegro, com o risco de pôr em causa todas as actuais fronteiras dos Balcãs.
Serão porém estas fronteiras um tabu ultrapassável, como cada vez mais «peritos » e diplomatas sugerem em voz alta? As guerras da década de 1990 foram desencadeadas em nome dos «grandes» Estados, da «Grande Sérvia» ou da «Grande Croácia». E por trás da reivindicação de independência do Kosovo perfila-se o espectro da «Grande Albânia»… Terá então chegado o tempo de se proceder a uma revisão de todas as reivindicações territoriais e de se definirem novas fronteiras – que por fim serão «justas» por coincidirem com a divisão étnica das populações? Será preciso que o mapa dos Balcãs seja redesenhado para garantir finalmente uma paz duradoura a esta região e, por conseguinte, a toda a Europa? A ideia, já antiga, ressurge regularmente.
Em 2001, durante o conflito da Macedónia, o editorialista Alexandre Adler propôs que se empregasse «a cirurgia de preferência à homeopatia» [
1] e que se encarasse a divisão desta república pós-jugoslava em regiões albanesas e macedónias. Nesse mesmo ano, lorde David Owen, antigo co-presidente da Conferência Internacional sobre a ex-Jugoslávia, propôs também um plano de redefinição das fronteiras balcânicas [2]. Fazendo-se eco a essas propostas, Arben Xhaferi, figura histórica do nacionalismo albanês na Macedónia, reclamou a criação de Estados «étnicos» [3].
Perante a constatação do malogro das negociações sobre o futuro do Kosovo e a impossibilidade dum compromisso sérvio-albanês, voltou à superfície a ideia duma divisão da província, que a «comunidade internacional» durante muito tempo considerara tabu. Wolfgang Ischinger, diplomata alemão representante da União Europeia na «troika diplomática» (um americano, um europeu, um russo) encarregada de levar a cabo as negociações sobre o Kosovo, declarou em Agosto de 2007 que não devia ser posta de lado nenhuma opção resultante de um acordo entre as partes implicadas; se Belgrado e Pristina conseguissem entender-se a respeito de uma divisão do Kosovo, a União Europeia deveria limitar-se a aprovar essa cisão…
A ideia tem a seu favor todas as aparências do bom senso: se determinadas populações não querem viver juntas, mais vale separá-las, podendo-se, se necessário, encarar deslocações «limitadas» de pessoas para fazer coincidir as novas fronteiras com a divisão étnica das comunidades… Mas imaginemos um instante que os planos dos aprendizes de feiticeiros se concretizam, que uma conferência internacional torna possível um novo traçado, pacificamente negociado, das fronteiras dos Balcãs ocidentais assentes em bases étnicas. Seria necessário, obviamente, prever uma unificação de todas as regiões onde os albaneses são maioritários, ou seja, a Albânia, o Kosovo, um quarto do Noroeste da Macedónia, mas também o vale de Presevo, no Sul da Sérvia, e as franjas orientais do Montenegro.
Nesse caso, a Macedónia, terrivelmente amputada, seria apenas um Estado dependente, a não ser que as correntes pró-búlgaras levassem a melhor e que o país se unisse ao seu vizinho oriental. A questão das minorias na Albânia não deixaria de ser levantada; os gregos do Sul do país poderiam reclamar a sua união à Grécia; e os albaneses expulsos depois de 1945 do Epiro do Norte, zona grega (região a que os albaneses chamam Cameria), não se esqueceriam de lembrar os seus direitos espezinhados. O Montenegro poderia reclamar compensações na região de Shkodra, onde continuam a viver minorias sérvio-montenegrinas, e a Macedónia reclamaria a agregação das aldeias eslavas em redor dos lagos de Ohrid e de Prespa.
Naturalmente, os sérvios da Bósnia-Herzegovina unir-se-iam à «mãe pátria», o que representaria o fim da Bósnia, tanto mais que os croatas da Herzegovina ocidental, da Bósnia central e de Bosanka Posavina (Orasje, Odzak) se uniriam à Croácia. Restaria pois, no máximo, um «micro-Estado» muçulmano-bósnio, concentrado à volta de Sarajevo, Zenica e Tuzla. E realizar-se-ia assim, em suma, o famoso plano de divisão da Bósnia-Herzegovina, esboçado em 1991 por Franjo Tudjman e Slobodan Milosevic [
4]. É claro que a Bósnia se agarraria à defesa do enclave oriental de Gorazde e reclamaria a união do Sandjak de Novi Pazar, actualmente dividido entre a Sérvia e o Montenegro [5].
Obviamente, o Estado montenegrino não subsistiria nas suas fronteiras actuais. Além da secessão das regiões albanesas e bósnias, teria de afrontar a secessão das regiões sérvias. Como as populações bósnias e sérvias estão completamente misturadas nesta zona, seria inelutável um episódio de guerra, para obter a deslocação de populações que permitissem fixar uma fronteira aceitável. A Croácia obteria com certeza a baía de Kotor, que só foi agregada ao Montenegro em 1918 e continua marcada por uma velha tradição católica. Em suma, o Montenegro voltaria rapidamente às suas fronteiras de meados do século XIX.
A Sérvia ficaria também numa situação paradoxal. Amputada das suas zonas albanesas e bósnias mas aumentada com o território da actual Republika Srpska da Bósnia-Herzegovina e com as zonas sérvias do Norte do Montenegro, ver-se-ia obrigada a gerir o quebra-cabeças da Voivodina. Nesta região autónoma do Norte do país, cerca de vinte diferentes minorias continuam a representar quase 50 por cento da população. Como os húngaros constituem ali a principal comunidade (cerca de 350 000 pessoas), os concelhos de Subotica, Senta e Kanjiza voltariam com certeza a fazer parte da Hungria, a menos que a Voivodina proclamasse a sua independência, tornando-se o único ilhéu de multi-etnicidade nesses Balcãs entregues à loucura…
Tendo em conta que os novos arranjos fronteiriços não poupariam os países que já são membros da União Europeia, a questão das minorias na Grécia não se limitaria aos albaneses. Os muçulmanos – turcos e pomaques – da Trácia ocidental pediriam a sua união, respectivamente, à Turquia e à Bulgária, anulando os Acordos de Lausana de 1923 [
6]. Deveria também ser aberta a questão dos eslavos da Macedónia grega, até agora assunto tabu no Estado helénico. Por seu turno, a Eslovénia obteria por fim satisfação nos conflitos microterritoriais que a opõem à Croácia [7]. Reclamaria a anulação dos plebiscitos de 1918 [8] e alargar-se-ia para a actual Caríntia austríaca, onde continuam a viver minorias eslovenas. Lubliana, devido à sua atitude positiva na gestão dos conflitos regionais, poderia igualmente ficar com uma parte do Friuli italiano, pelo menos com a cidade de Gorizia, actualmente dividida pela fronteira, ou mesmo com a de Trieste (Trst, em esloveno) [9].



Uma ''macedônia'' de povos e reivindicações contraditórias


Essa vasta rectificação das fronteiras descuraria sem dúvida as reivindicações de algumas minorias; com efeito, que destino dar aos goranis do Kosovo, aos rutenos da Eslavónia oriental croata ou aos aromunis da Macedónia, da Albânia e da Grécia? Quanto aos três a quatro milhões de romanis que vivem nos Balcãs ocidentais, estes continuarão a ser o que sempre foram, um povo sem Estado.
Seria pouco provável que tais rectificações pudessem ser feitas sem contestações, as quais causariam conflitos armados de média intensidade. Uma Task Force regional chefiaria as tropas da União Europeia encarregadas de restabelecer a paz. Em contrapartida, as inevitáveis deslocações de populações não deveriam ser vistas como um dano colateral, mas sim como o objectivo central de todo o processo. Seriam supervisionadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), com a colaboração de muitas organizações não governamentais (ONG), e o orçamento da ajuda humanitária de emergência concedida aos Balcãs ocidentais revelar-se-ia muito superior ao desbloqueado durante a crise do tsunami de Dezembro de 2004…
Este cenário pode parecer extravagante, mas estão desde já em aberto vários dossiês, quer se trate do futuro da Bósnia-Herzegovina ou da «questão nacional albanesa». Os defensores da independência do Kosovo sublinham que esta não deverá constituir um precedente, mas isso é apenas um voto piedoso; a resolução desta questão terá o valor de precedente se os portadores de outras reivindicações – nos Balcãs e noutras paragens – assim o considerarem.
A ideia de que as alterações de fronteiras poderão resolver todas as questões nacionais baseia-se numa ilusão fundamental, a de que existiriam fronteiras «justas» pelo facto de serem étnicas. Na realidade, todas as fronteiras – e não apenas nos Balcãs – são criações históricas, resultado de relações de forças políticas e militares. Não há fronteiras «justas», tal como não há fronteiras «naturais».
O uso da palavra «Balcãs» generalizou-se durante o século XIX, com um pesado conteúdo ideológico. Ao mesmo tempo que o Império Otomano, «o doente da Europa», se ia aos poucos desagregando, as reivindicações contraditórias dos diversos povos antes submetidos começaram a chocar umas com as outras. Os «Balcãs» tornaram-se sinónimo de complexidade nacional, de conflitos sem fim, de estilhaçamento e fragmentação. A «balcanização» deu sentido aos Balcãs, tornou-se a mais importante marca identitária desta porção da Europa; o conceito de «Balcãs» foi ideológico antes de ser geográfico. Nesta «salada macedónia» de povos, aspirações e reivindicações contraditórias, as fronteiras foram asperamente disputadas.
A emergência dos Estados e a definição das fronteiras são um relevante fenómeno da entrada dos Balcãs na modernidade política. Estes recém-chegados basearam-se em geral numa concepção nacional do Estado, retomando e adaptando modelos oriundos da particular experiência histórica da Europa Ocidental. A Grécia e a Sérvia, no início do século XIX, basearam-se na limpeza étnica, na expulsão ou assimilação de populações consideradas «alógenas», em particular devido à sua religião; os «turcos» (ou seja, os muçulmanos, tanto os eslavos como os albaneses ou turcófonos) foram expulsos dos novos Estados.
A definição das fronteiras surgiu também como uma forma de ordenar a «confusão» balcânica, de a pôr na ordem europeia ideal, baseada na coincidência entre os povos, as fronteiras e os Estados. A diversidade das identidades linguísticas, «nacionais» e religiosas, que caracterizava os Balcãs otomanos, começou a reduzir-se.
Esse processo acelerou-se durante as guerras jugoslavas do fim do século XX; a presença sérvia foi drasticamente reduzida na Croácia (passando de 12 por cento para cerca de 4 por cento da população total do país), o «mosaico» bósnio foi transformado em amplas zonas mono-étnicas, cada uma delas controlada por uma das três comunidades do país. Nos séculos XIX e XX, os Estados mais poderosos – Áustria-Hungria e Rússia, mas também a França, a Grã-Bretanha e a Itália – lutaram para alargar as suas zonas de influência nos escombros do Império Otomano, apoiando ou mesmo excitando as reivindicações nacionais dos diversos povos balcânicos, sendo as políticas dos Estados revezadas pelos jornalistas ou pelos viajantes que percorriam a região. Na década de 1930, a romancista britânica Rebecca West escarnecia das ideias feitas, «humanitárias e filantrópicas», desses observadores que abraçavam as diversas causas nacionalistas, notando que «os búlgaros dos irmãos Buxton e os albaneses de que Miss Durham se tornou grande defensora, assemelham-se muito ao quadro do infante Samuel pintado por Sir Joshua Reynolds» [
10].

Peões europeus no novo confronto russo-americano


Vários momentos de transição marcaram a progressiva definição das fronteiras. Para começar, 1878. A «grande crise do Oriente» teve um primeiro epílogo com o Tratado de Santo Stefano, que previa a criação de uma «muito grande Bulgária» sob protectorado russo. Essa perspectiva, lesando a Sérvia e a Roménia, provocou um brado de indignação, tendo sido anulada alguns meses depois pelo Congresso de Berlim, que entre outras coisas atribuiu um mandato à Áustria-Hungria sobre a Bósnia-Herzegovina e o Sandjak de Novi Pazar.
As guerras balcânicas de 1912-1913 e, depois, a Primeira Guerra Mundial marcaram o outro momento essencial dessa imensa jogada de póquer territorial. Em 1918, a Sérvia e a Roménia obtiveram enormes gratificações pela sua participação no campo dos Aliados; a dinastia sérvia dos Karadjordjevic pôde criar o seu ceptro, o novo «Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos» (antepassado da Jugoslávia), ao mesmo tempo que Bucareste formava a «Grande Roménia».
Apesar dos princípios wilsonianos proclamados logo a seguir ao primeiro conflito mundial, estes Estados, obviamente, não tinham em conta o direito de os povos disporem de si mesmos e incorporavam um grande número de grupos na situação de minorias nacionais. O Komintern via na Jugoslávia monárquica, na década de 1920, uma nova «prisão dos povos», sendo bem verdade que o Estado centralizado criado sob o ceptro dos Karadjordjevic pouco tinha a ver com os românticos sonhos de unidade dos diversos povos eslavos do Sul, ou «jugoslavos» [
11].
As fronteiras internas da Jugoslávia socialista e federal, delineadas em 1945, foram «o menos pior compromisso possível», nas palavras do principal responsável pela sua definição, o futuro dissidente Milovan Djilas. O sistema jugoslavo baseava-se numa dissociação fundamental da cidadania e da nacionalidade, herdada do pensamento austro-marxista do início do século XX(12). Cada indivíduo era cidadão da república federada onde residia (e da Federação Socialista), ao mesmo tempo que pertencia à comunidade nacional de sua escolha; nos recenseamentos jugoslavos, a declaração de nacionalidade era livre.
A experiência balcânica mostra que as reivindicações dos diversos povos só podem traduzir-se em reivindicações estatais através de conflitos incessantes. No Kosovo, as reivindicações exclusivas e antagonistas de dois povos num mesmo território só podem ter dois tipos de soluções: a vitória de um povo sobre o outro – que inevitavelmente provoca frustrações e desejo de vingança – ou a invenção de novas formas de coexistência política e de co-soberania. O quadro europeu deveria justamente concitar à invenção de novas formas políticas capazes de ultrapassar os conflitos territoriais e fronteiriços.
A intervenção das «grandes potências» é essencial para se compreender a progressiva formação das fronteiras balcânicas. Deste ponto de vista, a história gagueja: a questão do Kosovo tornou-se um peão no vasto braço de ferro mundial que se está a jogar entre a Rússia e os Estados Unidos. Neste combate de titãs, é evidente que os interesses reais dos albaneses, dos sérvios e de todas as populações que vivem no Kosovo podem muito bem ser esquecidos.
Pretender resolver as questões balcânicas através de novas divisões territoriais iniciaria uma medonha espiral. Em vez de novas compartimentações territoriais, já é tempo de imaginar outras respostas a dar às reivindicações dos povos.


Por JEAN-ARNAULT DÉRENS *

* Chefe de redacção do sítio Internet Le Courrier des Balkans; publicou recentemente, com Laurent Geslin, Comprendre les Balkans. Histoire, sociétés, perspectives, Non Lieu, Paris, 2007.
domingo 30 de Março de 2008



Notas
[1] Alexandre Adler, «Pour les Balkans, chirurgie ou homéopathie?», Courrier international, Paris, 12 de Abril de 2001.
[2] Lord David Owen, «Redessiner la carte des Balkans», Le Monde, 21 de Março de 2001.
[3] Arben Xhaferi, «Les États multiethniques ne sont pas une solution», Le Courrier des Balkans, 28 de Abril de 2003, http://balkans.courrier.info/article3009.html.
[4] Em 1991, o presidente sérvio Slobodan Milosevic e o seu homólogo croata Franjo Tudjman aprovaram um plano secreto de divisão da Bósnia.
[5] Ler «Le Sandjak de Novi Pazar, un foyer de tension en Europe du Sud-Est», Le Courrier des Pays de l’Est, n.º 1058, Novembro-Dezembro de 2006, pp. 78-93.
[6] Este tratado, assinado em 24 de Julho de 1923, previa amplas permutas de população entre a Grécia e a Turquia, reconhecendo, ao mesmo tempo, a existência duma minoria «muçulmana» na Trácia ocidental grega.
[7] Estes conflitos têm a ver com o golfo de Piran, onde o traçado da fronteira terrestre determina o acesso da Eslovénia às águas marítimas internacionais, e com a região de Mura.
[8] Que determinaram a pertença à Áustria ou à Eslovénia de territórios fronteiriços contestados.
[9] Lembremos que o Território Livre de Trieste, criado em 1947, só foi dividido em 1954. A zona A, que engloba a própria cidade, coube à Itália; a zona B foi atribuída à Jugoslávia e faz hoje parte da Eslovénia.
[10] Rebecca West, Agneau noir et faucon gris. Un voyage à travers la Yougoslavie, L’Âge d’homme, Lausana, 2001.
[11] A ideia jugoslava começou por ser desenvolvida por intelectuais croatas como Ljudevit Gaj (1809-1872) ou o bispo Josip Strossmayer (1815-1905).

BALCÃS - OS POVOS ESQUECIDOS

Pequenas comunidades, formadas de várias etnias, são as vítimas desconhecidas das guerras dos Bálcãs, que opunham “grandes nacionalismos” e hoje esmagam as minorias que não se “encaixam” no modelo de Estado-nação ocidental


terça-feira 1º de julho de 2003


Os cidadãos bósnios nascidos de casamentos mistos, isto é, cujos pais pertenciam a comunidades diferentes, estavam entre as primeiras vítimas da guerra




“Como se pode ser croata?”, perguntava Alain Finkielkraut1 há cerca de dez anos. Seria mais adequado perguntar: como se pode ser galiciano, torbese, valáquio, ruteno ou cigano? A década de guerras iugoslavas chegou ao fim com centenas de milhares de mortos, milhões de refugiados e apátridas, e sempre, desde a guerra da Croácia até o conflito da Macedônia, os “pequenos povos” aparecem como vítimas esquecidas, esmagadas no confronto entre os “grandes” nacionalismos.
A primeira guerra iugoslava, no verão e outono de 1991, teve como saldo uma pavorosa carnificina na Eslavônia croata. O conflito opunha os independentistas croatas aos sérvios da Croácia que haviam lutado pela separação da Croácia quando esta caminhava para a independência. Os sérvios receberam o apoio decisivo do Exército Popular Iugoslavo (JNA), que se deixou manipular pelo nacionalismo sérvio. No entanto, sérvios e croatas não foram as únicas vítimas dos confrontos.
A uns 10 quilômetros de Vukovar, Petrovci era um rico vilarejo agrícola. Antes da guerra, de 200 a 300 sérvios ali viviam em paz, ao lado de mais ou menos o mesmo número de croatas e de perto de mil rutenos e ucranianos. Os rutenos são ucranianos do Oeste, originários de regiões que fizeram parte do império austro-húngaro e não das possessões russas, como a Bukovine ou a Rutênia subcarpática. Rutenos e ucranianos chegaram aos Bálcãs na metade do século XVIII, sob o reinado da imperatriz Maria Teresa da Áustria, na condição de colonos agrícolas encarregados de repovoar e de valorizar as terras libertadas dos turcos. Do ponto de vista confessional, os rutenos são uniatas ou “católicos gregos”: reconhecem a autoridade do papa, ao mesmo tempo em que conservam a liturgia oriental.

Comunidades cindidas
Quando a guerra atingiu Vukovar, alguns rutenos de Petrovci alistaram-se nas forças croatas. Outros fizeram com que entrassem víveres na cidade sitiada pelas tropas sérvias. Quando os sérvios ocuparam a região, esses rutenos pró-croatas tomaram o caminho do exílio em companhia dos croatas. Durante mais de seis anos, Petrovci fez parte da “República sérvia da Eslavônia oriental, Srem e Baranja”. Dezenas de jovens rutenos do vilarejo fizeram o serviço militar obrigatório nas forças sérvias. Em janeiro de 1998, os acordos adicionais de Erdut homologaram a restauração progressiva da soberania croata sobre a região2. Foi a vez de os rutenos mais ligados ao poder sérvio tomarem o caminho do exílio, indo majoritariamente para a Voivodine sérvia, onde viviam comunidades rutenas muito importantes. Os “rutenos pró-croatas” voltaram e, atualmente, ocupam posições de destaque em Petrovci. O pároco uniata de Vinkovci só pode constatar as terríveis rupturas entre a comunidade rutena do vilarejo, dividida por confrontos nacionalistas que, a priori, quase não lhe diziam respeito.
A afirmação dos nacionalismos obriga as pequenas comunidades a “escolherem um lado”, numa guerra que a priori não é sua
Todas as guerras iugoslavas poderiam fornecer dezenas de histórias desse tipo. A afirmação dos nacionalismos obriga as pequenas comunidades a “escolherem um lado”. Aliás, a primeira pressão se exerce sobre os indivíduos que, em virtude de sua história pessoal e familiar ou por oposição ideológica, não se reconhecem nos nacionalismos em conflito. Os cidadãos bósnios nascidos de casamentos mistos, isto é, cujos pais pertenciam a comunidades diferentes, estavam entre as primeiras vítimas da guerra. Os territórios controlados pelo governo de Sarajevo durante o conflito ofereciam-lhes um pouco mais de segurança, pois a Bósnia era oficialmente defendida em nome de seu caráter multiétnico. Entretanto, mesmo em Sarajevo, as lógicas de homogeneização nacional, incentivadas pelo Partido Nacionalista Muçulmano (SDA), no poder, e amplamente retomadas por uma sociedade traumatizada pela guerra, acabaram totalmente com o sonho de coexistência multinacional. A guerra do Kosovo oferece outros exemplos trágicos dessa lógica de homogeneização. O nacionalismo albanês buscava apresentar a situação no Kosovo como um conflito entre o poder sérvio e a sociedade civil albanesa. Essa apresentação se esquecia de que no Kosovo também existiam civis sérvios, bem como numerosos representantes das comunidades menores. Segundo o censo de 1981, os turcos, os ciganos, os galicianos, os bósnios e os croatas representavam, juntos, mais de 10% da população total do Kosovo
3
.

Renúncia à identidade
Depois da instauração do protetorado internacional sobre o território, em junho de 1999, todas essas comunidades encontraram-se na mira do nacionalismo albanês. Os ciganos e os “egípcios4” foram acusados, coletivamente, de cumplicidade com o regime sérvio e, por essa razão, foram vítimas de uma “limpeza étnica” sistemática. Os turcos, por sua vez, foram obrigados a se albanizar. Trilíngües de modo geral, os turcos do Kosovo dominam o turco, o albanês e o sérvio. Para poder permanecer no Kosovo, freqüentemente tiveram que renunciar à sua identidade específica e se declarar albaneses. Do mesmo modo que os turcos, um outro grupo aparentado aos ciganos, os Ashkalli, de língua albanesa, se esforçou por aumentar o patriotismo albanês com o objetivo de ser tolerado pela sociedade albanesa. Nem por isso deixou de ser vítima de inúmeros atos de violência.


O protetorado internacional mostrou-se incapaz de garantir o respeito elementar dos direitos lingüísticos, culturais e educacionais


Os bósnios e os croatas que falam o servo-croata foram assimilados aos sérvios por razões lingüísticas, bem como os galicianos, um pequeno povo que vive nas montanhas do extremo sul do Kosovo, muçulmano e que fala uma língua eslava próxima do macedônio. O protetorado internacional mostrou-se, até o presente, incapaz de garantir o respeito elementar dos direitos dessas comunidades, principalmente de seus direitos lingüísticos, culturais e educacionais5.
Os “pequenos povos” do Kosovo sentem, com razão, que foram manipulados por todos lados. Quando das negociações de Rambouillet, em fevereiro de 1999, Slobodan Milosevic teve a habilidade de incluir na delegação iugoslava vários representantes dessas pequenas comunidades que, por isso, ficaram desacreditadas não só diante dos albaneses, como também da comunidade internacional. A lógica que prevaleceu em Kosovo repetiu-se na Macedônia, onde o mosaico étnico, confessional e lingüístico é particularmente complexo. Desde os primeiros combates entre as forças macedônias e a guerrilha albanesa, em fevereiro de 2001, o diálogo político facilitado pela comunidade internacional reduziu-se a um face-a-face entre representantes macedônios e albaneses, “esquecendo” os turcos, os ciganos, os sérvios, os valáquios e os macedônios muçulmanos, chamados de torbeses6.


Guerras de homogeneização
Durante o conflito, foram criados mecanismos que reduziam a complexidade social a um confronto entre dois “grandes” nacionalismos, bem como uma assimilação dos pequenos grupos a esses “grandes” nacionalismos. Os sérvios e os valáquios ortodoxos7 identificam-se, naturalmente, com os macedônios, ao passo que o caso dos torbeses é mais complexo. De língua macedônia, são rejeitados pelo nacionalismo albanês, enquanto as manifestações extremistas do nacionalismo macedônio se opõem a tudo o que representa o islã. Mesquitas freqüentadas essencialmente por turcos ou por torbeses, por exemplo, foram destruídas por manifestantes em Prilep, em junho de 2001. Há muito tempo, na Macedônia, as estruturas oficiais do islã, dominadas por albaneses, haviam feito uma campanha de albanização das comunidades muçulmanas não albanesas, essencialmente os turcos e os torbeses, que representam, respectivamente, 4% e 3% da população do país8. Uma deterioração da situação política obrigaria essas comunidades não só a escolherem a que lado aderir, mas também a renunciarem a uma boa parte de sua identidade.
As divisões políticas e as guerras que ensangüentaram os Bálcãs desembocaram num movimento de homogeneização nacional


As divisões políticas e as guerras que ensangüentaram os Bálcãs há uma década desembocaram então, em toda parte, num movimento de homogeneização nacional.


Para retomar uma metáfora utilizada com freqüência a respeito da Europa central a partir de 1918, passa-se de um mosaico complexo ou de um quadro detalhista em que mil cores se misturam a um afresco que só mostra amplas camadas de algumas cores. Essa homogeneização nacional seria inevitável? As guerras iugoslavas deveriam terminar com a emergência de Estados nacionais monoétnicos, em que só subsistiriam raras minorias nacionais com seus direitos garantidos e controlados por organismos internacionais?
O próprio vocabulário multiplica as armadilhas. É importante ser preciso com o sentido das palavras. Povos, nações, minorias, Estados nacionais: de que se está falando? Para o senso comum ocidental, que detesta os conflitos “interétnicos”, as etnias representariam algo inferior ou anterior às nações, num esquema supostamente linear do desenvolvimento social. Em 1991, o presidente François Mitterrand abriu um seminário intitulado “A Europa e as tribos”. Etnias, tribos: esse vocabulário coloca os Bálcãs do lado de uma “selvageria” ou de um “primitivismo” que não poderiam ser europeus.

A difícil definição de minoria
O sistema iugoslavo fazia uma distinção entre os “povos constitutivos” da Federação e de uma ou de várias das repúblicas federadas – os sérvios, os croatas, os eslovenos, os macedônios, os montenegrinos e, a partir do fim da década de 60, os muçulmanos, estes entendidos no sentido nacional de eslavos muçulmanos da Bósnia e do Sandjak de Novi Pazar – e as minorias nacionais ou nacionalidades que não dispunham de um “lar nacional” numa das repúblicas federadas. Os povos alógenos – isto é, minorias dispondo de um Estado de referência fora da Iugoslávia – também eram “minorias nacionais”, independentemente de sua importância numérica e quer se tratasse dos italianos da Istria, dos húngaros de Voivodine ou dos albaneses.
As minorias disporiam apenas de direitos “concedidos” pela maioria e sempre passíveis de revogação
A definição do termo “minoria” era, pois, estritamente jurídica e não demográfica. Dentro de configurações geográficas dadas – uma cidade, uma região – essa ou aquela minoria poderia ser demograficamente majoritária, sem que isso influísse sobre seu status. Dessa maneira, os albaneses do Kosovo indignavam-se com o status de minoria por causa de seu caráter nitidamente majoritário no interior da província autônoma do Kosovo; porém, eles eram certamente minoritários em relação à República da Sérvia, da qual o Kosovo fazia parte. Depois da instauração do protetorado internacional sobre esta república, foi a vez de os sérvios se recusarem a ser tratados como uma minoria. Além do problema de escala: qual levar em conta? O Kosovo, como querem os albaneses? A Sérvia ou a Iugoslávia, como querem os sérvios? A noção de minoria soa mal aos ouvidos balcânicos, apesar de todas as promessas de garantias internacionais.


Busca da legitimidade de Estado
As minorias disporiam apenas de direitos “concedidos” pela maioria e sempre passíveis de revogação. Desse modo, a noção de minoria é concebida na linha direta daquela do milet, a comunidade protegida da época otomana. Ademais, as minorias não são titulares de uma legitimidade de Estado. Ora, o objetivo de todos os nacionalismos dos Bálcãs consiste de fato em criar ou em defender um Estado, definido sobre uma base “nacional” ou “étnica”, isto é, que tem sua legitimidade baseada num sentimento popular de pertencimento a uma mesma entidade geográfica, política e cultural.
Mas o que é uma nação, ou o que é um povo nos Bálcãs? Os critérios “objetivos” comumente reconhecidos – a língua, o pertencimento confessional etc. – se misturam segundo combinações sempre variáveis. Se o pertencimento confessional representa a barreira mais evidente entre os sérvios ortodoxos e os croatas católicos, os albaneses, em compensação, formam um só povo, mas se dividem entre muçulmanos, ortodoxos e católicos.
É importante retomar o passado otomano. A Porta Sublime não reconhecia a existência de grupos nacionais, mas somente a de grupos confessionais, “protegidos” pelo sultão e que dispunham de estruturas de auto-administração no quadro dos milets. As nações modernas constituíram-se sobre essa base. Esse ancoramento confessional das comunidades explica o caráter nacional de que se revestiram as igrejas ortodoxas. Essa deriva étnica das igrejas ortodoxas foi, no entanto, denunciada sob o nome de heresia etnofilética pela teologia oriental desde o segundo concílio de Constantinopla, em 1872
9.


Diversidade sufocada
Os novos Estados, cujas elites freqüentemente se formam em Paris, Viena ou Berlim, tomam como modelo os Estados-näção ocidentais

Esses milets poderiam ser reduzidos a estruturas protonacionais? Durante séculos, as populações dos Bálcãs viveram em sociedades compósitas e a identidade de cada indivíduo se definia segundo um espectro de elementos variáveis. O pertencimento confessional era, em toda parte, um critério importante, assim como o pertencimento social ou profissional. As línguas faladas eram múltiplas: a uma língua litúrgica - o árabe para os muçulmanos, o grego ou o eslavão para os ortodoxos - acrescentavam-se a língua da administração, o turco, uma ou várias línguas de negócios, com freqüência o grego, e enfim a língua materna que, muitas vezes, variava de uma cidade ou de uma microrregião para outra. Esse plurilingüismo foi diretamente atacado pelos nacionalismos modernos que codificaram e impuseram o uso de línguas que se tornaram nacionais. De um modo geral, esse espectro de identidades se reduziria à medida que se afirmassem os nacionalismos modernos, portadores de um projeto estatal e de reivindicações territoriais.
Os novos Estados, cujas elites freqüentemente se formam em Paris, Viena ou Berlim, iriam, deliberadamente, tomar como modelo os Estados-nação ocidentais, aceitando uma definição estritamente étnica da nação, bem como supondo uma comunidade confessional e a homogeneização de uma língua nacional. Esses novos Estados, num esforço suplementar, iriam então criar nações e reduzir o espectro de identidades a alguns parâmetros que definiriam a “identidade nacional”. As populações hostis a esse novo modelo, na maioria das vezes muçulmanas em razão de sua alteridade religiosa, se tornariam, pois, minorias nacionais.
O aparecimento dessas minorias nacionais é uma conseqüência direta da afirmação dos Estados-nação: enquanto a legitimidade política do Estado não tiver por base critérios étnico-nacionais, a noção de “minoria nacional” não terá sentido. Além disso, as fronteiras dos Estados não podem corresponder aos territórios, amplamente idealizados, das novas nações, acarretando o aparecimento de minorias transfronteiriças. Todas as guerras que afetaram a península balcânica depois de um século e meio – da crise do Oriente de 1878 às guerras balcânicas de 1912-1913, aos dois conflitos mundiais e às guerras iugoslavas de 1991-2001 – podem, pois, ser definidas como tentativas visando a fazer coincidirem as fronteiras dos Estados com os sonhados territórios da nação, e que se traduzem principalmente pelas reivindicações maximalistas de Grande Sérvia, Grande Albânia e Grande Bulgária.


A guerra das identidades
Todas as guerras balcânicas desde o século 19 podem ser definidas como tentativas de fazer coincidirem as fronteiras dos Estados com os sonhados territórios da nação
Os nacionalistas, aliás, sempre preferem esses últimos a fronteiras ditas naturais e, por exemplo, falam de “Albânia étnica” e não de Grande Albânia, esquecendo-se de que os albaneses, há séculos, partilham os territórios em questão com outras comunidades. De fato, os Bálcãs se revelam estreitos demais para acolher todas as reivindicações estatais e territoriais contraditórias, o que acarretou lutas terríveis, ao mesmo tempo em que as identidades hostis ao novo modelo nacional eram esmagadas impiedosamente.
No entanto, outros modelos que não a afirmação de um nacionalismo estatal e territorial eram possíveis. A dispersão geográfica impediu os arromenos de alimentarem quaisquer reivindicações territoriais. Na Macedônia, no fim do século 19, havia entre 69.600 (segundo as estatísticas sérvias de 1889) e 80.700 arromenos (segundo as estatísticas búlgaras de 1900), mas somente 25.100 conforme as estatísticas gregas do ano de 1904
10. Os gregos certamente incluíram muitos arromenos entre os seus, ao passo que sérvios e búlgaros tinham um interesse estratégico evidente em minimizar a parte do elemento grego na Macedônia.
Na vasta Macedônia ainda otomana, os diferentes povos cristãos entregavam-se a uma guerra implacável para determinar a identidade nacional das populações. A escola e o pope
11 – sérvios, gregos ou búlgaros – fixavam com freqüência a identidade ainda flutuante dessas populações, e os governos de Belgrado, de Sofia e de Atenas utilizavam meios eficazes para defender sua causa. Ratificada pelo tratado de Bucareste em 1913, a divisão da Macedônia já se esboçava.

Herança imperial
Ao mesmo tempo em que Milosevic estimulava o nacionalismo sérvio fora das fronteiras do país, a Sérvia se impôs como um dos países mais multiétnicos dos Bálcãs

O modelo otomano era essencialmente imperial: o centro todo-poderoso do poder era o fiador dos equilíbrios sociais. Inversamente, o nacionalismo apareceu como um fenômeno indissociável da democracia política. Até fundou essa democracia, pois que a primeira tarefa dos movimentos de emancipação consiste em definir o quadro de referência em que a democracia será exercida. Não é por acaso que a Sérvia - cujo movimento de emancipação remonta à sublevação de 1804 e cuja autonomia foi reconhecida ainda em 1830 - pode se vangloriar de conhecer uma das mais antigas democracias parlamentares da região. Na Sérvia, a criação de um Estado nacional – com referência explícita no modelo francês – e a democracia política caminharam juntas, marcando os dois aspectos maiores da modernidade política.
O federalismo iugoslavo herdou muito da tradição imperial, misturada com influências vindas da teoria austro-marxista das nacionalidades, que busca dissociar a nacionalidade pessoal do pertencimento territorial12.
Sob o sistema de Tito, a fidelidade de todas as comunidades ao regime era um dado certo em troca de garantias reais de proteção. Durante dez anos, Slobodan Milosevic soube preservar os equilíbrios internos à Sérvia apoiando-se nessa antiga lógica de legitimação ao mesmo tempo em que estimulava o nacionalismo sérvio fora das fronteiras do país. Agindo assim, e esse não é o menor dos paradoxos das guerras iugoslavas, a Sérvia se impôs como um dos países mais multiétnicos dos Bálcãs, com a comunidade bósnia muçulmana do Sandjak de Novi Pazar, a importante população cigana disseminada em todos os países e, sobretudo, o mosaico étnico de Voivodine.
Apesar de alguns casos limitados de violência diretamente imputáveis aos extremistas sérvios de Vojislav Seselj, a coexistência interétnica pôde perdurar em Voivodine, essencialmente porque o poder central não queria agitação com perturbações sociais nessa região, pulmão agrícola e econômico da Sérvia. O exemplo de Voivodine prova claramente que não existe nenhuma espécie de fatalidade das guerras étnicas, que uma sociedade compósita não é, a priori, mais frágil que uma sociedade monoétnica: entrar em guerra resulta da relação que o poder central mantém com as diferentes comunidades.


Etnicização do jogo político
É vital sair de uma abordagem que apresenta o Estado nacional como o único contexto político viável

Em sociedades multiétnicas, com muita freqüência, o pluripartidarismo leva, no entanto, a uma etnicização do jogo político. Um bom exemplo desse fenômeno é o caso da Bósnia. Por ocasião das eleições pluripartidárias de 1990, os três partidos nacionalistas - o Partido da Ação Democrática (SDA, muçulmano), o Partido Democrático Sérvio (SDS) e a União Democrática Croata (HDZ) - obtiveram resultados correspondentes à importância relativa dos grupos que pretendiam representar, ainda que quase um terço dos cidadãos tivessem optado, entretanto, por votar em partidos não nacionais13. Desde então, nenhum projeto político conseguiu se impor transcendendo essas barreiras étnicas.
O modelo de Tito de proteção das identidades se esfacelou junto com a Federação Iugoslava. Os Estados que o sucederam procuraram tirar toda sua legitimidade de seu caráter nacional. Essa evolução foi mais ou menos coroada de êxito no caso da Croácia à custa do êxodo da maior parte da população sérvia dessa república
14. Na Macedônia, a vontade de fundar a legitimidade do Estado com base numa abordagem étnico-nacional quase jogou o país na guerra civil. Paradoxalmente, a Sérvia continua sendo um dos Estados mais multiétnicos da região. A “revolução” democrática de outubro de 2000 recolocou em primeiro plano os interesses em jogo na constituição da Sérvia como Estado-nação.


Risco de mais choque de nacionalismos
A hipótese de uma provável fragmentação da União da Sérvia e Montenegro, última metamorfose da Federação Iugoslava, levará a Sérvia a tornar-se independente. Esta independência a impulsionará a se definir como Estado mononacional ou como sociedade multiétnica? E, de modo geral, será que os Estados balcânicos conseguirão fundar as fontes de sua legitimidade política de outro modo que não sobre bases etnonacionais15?
É vital sair de uma abordagem que apresenta o Estado nacional como o único contexto político viável e que postula que a constituição desse tipo de Estado estaria inserida numa espécie de lei universal de desenvolvimento das sociedades humanas. Se não for assim, novos confrontos territoriais seriam provavelmente inevitáveis, e os “pequenos povos”, as minorias esquecidas pelo choque dos nacionalismos, pagariam mais uma vez por esses conflitos de alto custo.


(Trad.: Iraci D. Poleti)


1 - Ler, de Alain Finkielkraut, Comment peut-on être Croate?, ed. Gallimard, Paris, 1992.

2 - Ler Les conflits yougoslaves de A à Z, ed. L’Atelier, Paris, 2000.

3 - Ler, de Michel Roux, Le Kosovo. Dix clés pour comprendre, ed. La Découverte, Paris, 1999.

4 - Um grupo próximo dos ciganos apareceu, bem recentemente, nas estatísticas de nacionalidades, mas que conserva sua especificidade. Ler, de Jean-Arnault Dérens, “Adieux au Kosovo multiethnique”, em Le Monde diplomatique, fevereiro de 2000.

5 - Ler, de Stanislav Milojkovic, “De l’enseignement des langues au Kosovo”, site du Courrier des Balkans, http://www.balkans.eu.org/article1282.html

6 - Os goranci de Kosovo e os torbesi da Macedônia são bastante próximos dos pomaks da Grécia e da Bulgária.

7 - Os valáquios, ou Tsintsares, ou arromenos, são um povo de língua neolatina, próxima do romeno.

8 - Segundo o censo de 1994, pois os dados definitivos do censo de 2002 ainda não são conhecidos.

9 - O patriarca ecumênico de Constantinopla reagiu, então, ao reconhecimento da autonomia eclesial da igreja búlgara, reconhecida sob a forma de um “exarcado” por um firman imperial de 1870.

10 - Ler, de Georges Castellan, Histoire des Balkans, XIVe-XIXe siècles, ed. Fayard, Paris, 1991. 11 - N.T.: Pastor da Igreja Ortodoxa.

12 - Ler, de Otto Bauer, La social-démocratie et la question des nationalités, Montréal, 1989.

13 - Ler, de Xavier Bougarel, Anatomie d’une poudrière, La Découverte, ed. Paris, 1996.

14 - Ler, de Diane Masson, L’utilisation de la guerre dans la construction des systèmes politiques en Serbie et en Croatie, 1989-1995, ed. L’Harmattan, Paris, 2002.

15 - Ler, de Jean-François Gossiaux, Pouvoirs ethniques dans les Balkans, ed. PUF, Paris, 2002.

Guerra civil na Iugoslávia

Memória Globo Um dos maiores dramas da Europa Oriental no final do século XX teve como palco a Iugoslávia, nação erguida no pós-guerra com a união de seis repúblicas (Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro e Macedônia), além de duas províncias autônomas (Kosovo e Voivodina). - Desde 1945, o país vivia sob o regime comunista, estabelecido pelo ditador Josip Broz, o marechal Tito, que fundou a República Federal Socialista da Iugoslávia. Após sua morte, em 1980, os comunistas começaram a perder o controle do país. As divergências entre a Sérvia, principal república da Iugoslávia, e as demais regiões se agravaram. - Em 25 de junho de 1991, depois de um plebiscito, a Eslovênia e a Croácia declararam independência. Slobodan Milosevic, eleito presidente da Sérvia em 1989, não aprovou a autonomia das duas repúblicas e teve início uma sangrenta guerra civil. - Poucos dias após o início dos ataques à Eslovênia – primeira república a ser bombardeada pelo Exército iugoslavo controlado pelos sérvios –, o correspondente Silio Boccanera e o cinegrafista Luiz Demétrio Furkin foram para Liubliana, capital eslovena. - Durante uma semana, a equipe da TV Globo enviou matérias para seus principais telejornais mostrando a situação do país durante o conflito entre as forças locais e as tropas federais. Os repórteres foram até o aeroporto da cidade, onde eram grandes os estragos causados pelos bombardeios. Nas estradas ao sul da Eslovênia, ficaram no meio do fogo cruzado, mas conseguiram captar imagens impressionantes dos ataques da Força Aérea iugoslava sobre os rebeldes eslovenos. - Em 8 de julho de 1991, a Iugoslávia firmou acordo de paz com a Eslovênia. Logo em seguida, entretanto, o exército invadiu a Croácia e, com a ajuda das milícias sérvias locais, passou a ocupar um terço de seu território. A Globo não enviou nenhum correspondente internacional para a Croácia, e a cobertura da emissora foi feita basicamente com imagens produzidas pelas agências de notícias internacionais. - A Comunidade Européia e a ONU intervieram no conflito, que durou até janeiro de 1998, quando os territórios ocupados pelos sérvios foram entregues definitivamente à administração croata. - Seguindo os passos da Eslovênia e da Croácia, a Bósnia-Herzegovina também declarou sua independência. Num referendo realizado em fevereiro de 1992, a maioria da população votou a favor da soberania, enquanto os sérvios defenderam a permanência da república na Iugoslávia. Com isso, começaram os confrontos em Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, em que muçulmanos, croatas e sérvios destruíram-se uns aos outros. A Iugoslávia não participou oficialmente do conflito, mas forneceu apoio financeiro e militar às milícias sérvias, que rapidamente controlaram mais da metade da república. Iniciou-se uma “limpeza étnica” das áreas ocupadas, e campos de concentração começaram a surgir. A situação em Sarajevo chamou a atenção da comunidade internacional, que via todos os dias imagens chocantes do conflito. A população civil da Bósnia estava sendo dizimada, praticamente ao vivo, diante das câmeras das inúmeras redes de televisão. - A guerra na Bósnia completou um ano em abril de 1993. Naquele momento, já havia 135 mil civis mortos, sendo três mil crianças. Mais de um milhão de refugiados não tinham para onde ir. - Em 11 de abril o Fantástico exibiu a reportagem de Pedro Bial e o cinegrafista Sergio Gilz que acompanharam um dos vôos noturnos promovidos pela ONU (Organização das Nações Unidas) para lançar alimentos e medicamentos para a população bósnia, numa operação batizada de “Promessa de Prover”. No avião, que voava a uma altitude de três mil metros para evitar os bombardeios, os correspondentes aprenderam noções básicas de pára-quedismo e tiveram que usar máscaras de oxigênio nos momentos em que os mantimentos eram lançados. Para registrar a missão, o cinegrafista foi amarrado a um cabo que permitia que ele chegasse à ponta da rampa, quando a parte traseira do avião se abria para o lançamento das caixas. O vôo partiu da Alemanha e durou seis horas e meia, duas delas sobrevoando a Bósnia. - Pedro Bial e Sergio Gilz presenciaram de perto os horrores da guerra quando foram enviados para Sarajevo, em julho 1994. Os dois saíram de Zagreb, capital da Croácia, em um avião da ONU, junto com as tropas de paz. - Sérgio Gilz lembra o episódio: “Havia sempre a possibilidade de o avião ser alvejado, o que nos obrigava a tirar uma das proteções extras dos coletes à prova de bala que tínhamos nas costas e peito e sentar sobre ela. Na chegada, o avião taxiou bem próximo a uma proteção de sacos de areia para que pudéssemos sair com um risco menor de sermos atacados pelas tropas sérvias. O caminho do aeroporto para o hotel era a parte mais difícil. Nesse momento, ficávamos mais tempo expostos aos franco-atiradores”. - Durante cerca de 20 dias, a equipe da TV Globo percorreu a capital da Bósnia, completamente devastada pelas bombas lançadas sobre a cidade em dois anos de conflito. Apesar de, na época, ter sido estabelecido um cessar-fogo entre sérvios e muçulmanos, diariamente esse acordo era violado. Munidos de capacete e colete à prova de bala, cinegrafista e repórter percorreram as trincheiras acompanhados por militares brasileiros que faziam parte da força de paz da ONU. Em uma dessas ocasiões, uma bomba explodiu a cerca de 20 metros do local onde estavam. - Bial e Gilz registravam momentos dramáticos da população de Sarajevo. Da janela do hotel onde ficavam, puderam gravar imagens de uma das mais perigosas avenidas da capital, que ficou conhecida como “Sniper’s Avenue” (avenida dos franco-atiradores). Homens, mulheres, idosos e crianças atravessavam a rua correndo, temendo serem alvos dos atiradores, que não poupavam ninguém. - No final de 1995, depois de quase quatro anos de guerra civil na Iugoslávia, chegou-se finalmente a um acordo, conhecido por “Acordo de Dayton”, cidade norte-americana onde foram realizadas as negociações. O conflito na Bósnia deixou 250 mil mortos e 2,5 milhões de refugiados. - Em 21 de novembro, dia em que foi anunciado o acordo de paz, o Jornal Nacional encerrou seu noticiário com uma edição das imagens que marcaram o mundo durante aqueles quatro anos ao som da música Miss Sarajevo, cantada por Luciano Pavarotti e Bono, vocalista da banda irlandesa U2. A canção pedia paz. - Dez anos depois, em 13 de dezembro de 2005, o Bom dia Brasil apresentou uma série de cinco reportagens, produzidas pelos enviados especiais Marcos Uchôa e Sérgio Gilz, sobre a situação na Bósnia. A primeira delas analisou a formação da antiga Iugoslávia e traçou o histórico de “uma das guerras mais sangrentas do século XX”. A série revelou, ainda, que dez anos não tinham sido suficientes para curar as feridas e que, mesmo após a volta para casa de milhares de refugiados, o país continuava dividido.- Em 11 de março de 2006, conforme noticiado no Jornal Nacional, Slobodan Milosevic, “o carniceiro dos Balcãs”, foi encontrado morto no centro de detenção do Tribunal de Haia, na Holanda, onde respondia a processos por crimes contra a humanidade. O correspondente Roberto Kovalick informou que o homem “responsável pelos maiores genocídios na Europa depois da II Guerra Mundial” morreu em sua cela, aparentemente, de causas naturais.

Da Federação aos protetorados europeus



JANEIRO/2006

EX-IUGOSLÁVIA
Numa Europa de solidariedades, o ingresso das repúblicas balcânicas poderia curar feridas da guerra recente e ampliar direitos sociais. Mantidas as políticas européias atuais, o processo de adesão tende a ser traumático


"O paradoxo nos Bálcãs é que os países que teriam mais necessidade da integração européia para administrar sua multiplicidade de etnias são os menos preparados", diz o pesquisador.
Entre a União Européia e os Estados da ex-Federação Iugoslava, as grandes manobras começam. Não sem dificuldade, por sinal. As negociações para a adesão à UE tinham sido bloqueadas na Croácia, à qual a procuradora Carla del Ponte reprovava a recusa de cooperar com o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TIPIY). Mas a tristeza foi enterrada em 5 de outubro de 2005 para permitir a abertura de negociações com... a Turquia. A Macedônia também adquiriu o estatuto de "candidata" - a abertura das negociações seria confirmada em dezembro. Bruxelas prepara, com a Sérvia-Montenegro, um acordo de estabilização e associação (ASA), que daria a Belgrado um estatuto de "candidata potencial". Este mesmo "estatuto" foi recusado até o começo de outubro à Bósnia-Herzegovina, por "não-conformidade" da polícia da República Srpska - até que o "argumento" foi abandonado para fazer esta ùltima aceitar a renegociação da Constituição saída, há dez anos, do compromisso de Dayton. Por trás de toda essa agitação, o que está em jogo, de verdade?
"O paradoxo da situação nos Bálcãs pós-iugoslavos é que os países que teriam mais necessidade da integração européia para administrar sua multiplicidade de etnias são precisamente aqueles menos prontos para essa integração", constata o pesquisador Jacques Rupnik: "essencialmente porque se trata de Estados em decomposição, que não conseguem mais conter a violência organizada em uma parte do seu território e a desestabilização de seus vizinhos" [
1]. De fato, todas as antigas repúblicas iugoslavas têm agora um estatuto de (quase) protetorado, regido por textos de natureza constitucional que os colocam - exceto a Eslovênia e a Croácia - sob o controle das grandes potências [2].
Quando se questionou a propriedade social auto-gerida, a questão do Estado - paradoxalmente para os liberais - tornou-se central: que Estado, em que território, iria apropriar-se das divisas e do comércio exterior? Acima de tudo, como ganhar o apoio das populações ciosas de seus direitos sociais? As correntes não-nacionalistas liberais, que apoiavam o último primeiro-ministro iugoslavo Ante Markovid, em 1989, queriam que o questionamento do antigo sistema, em favor da competição de mercado e das privatizações se fizesse em escala federal. Este ponto de vista foi sustentado até 1991, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e grandes potências, hostis ao desmembramento da federação - Alemanha e Vaticano à parte. Mas para os poderes das repúblicas dominantes na Eslovênia, Croácia, e de modo diferente, na Sérvia, o que estava na ordem do dia era despedaçar a Federação. A consolidação de seus Estados vinha antes das privatizações, para que estas se realizassem com vantagem para essas repúblicas.


Eslovênia, caso emblemático
A Eslovênia já preparava sua moeda antes de deixar, em 1991, o barco que afundava. É certo que, contrariamente às outras repúblicas, não abrigava minorias nacionais fortes. Mas isto não é suficiente para ter um Estado próspero... A Eslovênia foi, de todos os países que se proclamavam socialistas, o que menos aplicou os preceitos liberais ao longo dos anos 1990 [3]: as resistências sociais e políticas às privatizações foram proporcionais às conquistas do antigo sistema - nível de vida elevado, 2% de desempregados no fim dos anos 1980 (contra 20% no Kosovo, por exemplo). E o Estado esloveno não tentou reduzir os salários nem os impostos sobre o capital para atrair os capitais estrangeiros ao longo da década de 1990, a despeito das pressões da Comissão Européia...
Quando a Alemanha reconheceu a independência da Croácia e da Sérvia, a UE, como "grande potência" alinhou-se à opção alemã. Os Estados Unidos ficaram à parte, alegrando-se com as dificuldades
Todas as outras repúblicas eram, assim como a Iugoslávia, multinacionais - e menos desenvolvidas. A gestão burocrática do sistema havia engendrado desperdícios e encorajado o "cada um por si", o que aprofundou as disparidades entre os níveis de vida. A paralisia e depois a divisão da Federação confrontaram em toda parte as comunidades minoritárias às políticas estatais impostas pela "nação" que dominava localmente, a qual procurava consolidar - e se possível, aumentar -"seu" território [
4] e sua legitimação em bases nacionalistas, em prejuízo das proteções solidárias. Pior: na virada dos anos 1990, as modificações das Constituições - na Sérvia, Croácia e Macedônia - trouxeram retrocessos para a situação das comunidades minoritárias. E foi por isso que se boicotaram aquelas revisões constitucionais.
Diante das declarações de independência, as grandes potências procuraram "conter" o incêndio na base de um único critério (apresentado como "princípio"): a manutenção a qualquer preço das fronteiras das repúblicas, uma vez reconhecida a dissolução da Federação como parte integrante do direito à autodeterminação... Implantada a pedido da Comunidade Européia, a comissão presidida pelo jurista Robert Badinter emitiu uma opinião favorável ao reconhecimento da independência da Eslovênia e da Macedônia (onde os partidos albaneses estavam associados ao poder). Essa comissão, por outro lado, adotou a prudência diante dos conflitos existentes na Croácia e na Bósnia-Herzegovina. É verdade que o direito internacional não dispunha de um "modelo" que respondesse aos problemas colocados. A associação de todas as comunidades envolvidas deveria ter prevalecido para um tratamento sistemático e igual das questões nacionais... Nada disso aconteceu.
Foi assim que se levou a Bósnia a organizar um referendo de independência, na esperança de que este último evitasse a guerra. Mas o referendo foi boicotado maciçamente pelos sérvios - não pelos croatas. Zagreb optou por não anunciar publicamente sua vontade de construir um Estado separado: a Herceg-Bosna, simétrica da Republika Srpska... E as potências européias, assim como os Estados Unidos, fecharam os olhos quando a Croácia reduziu a população sérvia a menos de 5% durante o verão de 1995. Uns e outros puseram em prática, caso a caso, os "princípios" - evolutivos - da Realpolitik. Tratava-se de "conter" as explosões (por meio dos "planos de paz ", evitando envolver-se nos conflitos) e apoiar-se nos Estados fortes da região (como em Dayton), procurando fazer progredir os objetivos geoestratégicos do momento: uma política de bombeiro piromaníaco...

Sociedades, a última preocupação
Quando a Alemanha decidiu reconhecer a independência da Croácia e da Sérvia, a União Européia comportou-se como grande potência à procura de "política externa comum": alinhou-se, em janeiro de 1992, à opção alemã. Os Estados Unidos, de início, ficaram à parte, alegrando-se com as dificuldades da Europa e da ONU. Exploraram em seguida a crise na Bósnia, depois no Kosovo, para garantir a redefinição e a ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) depois da dissolução do Pacto de Varsóvia em 1991 - sem com isso se envolver diretamente nos conflitos. A proteção das populações, o respeito aos povos e seus direitos eram a última de suas preocupações.
A Macedônia é o único Estado onde um princípio de dupla maioria - cidadã no país e nacional para as comunidades - permite aos albaneses bloquear medidas que julguem ameaçadoras
Na conferência de Rambouillet, em fevereiro de 1999, Belgrado apoiava os planos europeus de autonomia do Kosovo, contestados pelos independentistas albaneses. Inversamente, os sérvios recusavam a presença da OTAN no território, desejada pelos albaneses [
5]. Em vez de reconhecer o fracasso da primeira fase de sua "mesa redonda", que não havia permitido um verdadeiro encontro entre albaneses e sérvios, os governos europeus concentraram-se na política "reforçada" da secretária de Estado americana Madeleine Albright, que visava o Exército de Libertação do Kosovo (ELK). Depois de três meses de guerra, a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU estabeleceu o cessar-fogo. Mas como os acordos de Dayton, ela possuía contradições que persistem até agora: a Aliança Atlântica preservou sua unidade (apesar de fragilizada, como a etapa seguinte no Iraque irá mostrar). Os Estados Unidos conseguiram implantar uma vasta base militar em Bondsteel (denunciada hoje como o Guantânamo local). Mas o Kosovo, longe de se tornar independente, estava ao mesmo tempo sob protetorado e era província iugoslava.
Seis anos mais tarde, Washington conseguiu o que Slobodan Milosevic lhe havia recusado: o presidente Vuk Draskovic assinou, em 18 de julho passado, um acordo abrindo o país para as tropas da OTAN "até o fim de todas as operações de apoio à paz na região dos Bálcãs, a menos que as partes decidam de outra forma [
6]. Contudo, Belgrado - ao contrário dos albaneses do Kosovo - pode também, até agora, alegar uma resolução que mantém o Kosovo dentro da última federação entre a Sérvia e Montenegro... E para preservar estas fronteiras tirando o capacete da OTAN para pôr o da União Européia, o comissário europeu Javier Solana fez com que Montenegro continuasse dentro da Iugoslávia dirigida por Kostunica depois da derrota de Milosevic em dezembro de 2000. Batizado de "Solânia" pelos sérvios, o compromisso é inócuo para manter - provisoriamente - um estado Sérvia-Montenegro no qual Belgrado reafirmava o Kosovo como "província sérvia". Nada resolveu: este status continua mais do que nunca inaceitável para os albaneses - o que em troca não legitima sua apropriação da província às custas dos não-albaneses.

A pressão do "viver juntos"
Na realidade, tanto no Kosovo quanto na Bósnia, as instituições militares e civis do protetorado se misturam, pela necessidade de favorecer-se o "viver juntos" multi-étnico e portanto a responsabilidade das populações. Temendo um efeito dominó, os ocidentais generalizaram o sistema dos protetorados, acrescido de um tratamento heterogêneo dos direitos.
Por isso, a Macedônia é o único Estado onde, em virtude da modificação da Constituição de 1991, seguida dos acordos de Ohrid de 2001, um princípio de dupla maioria - cidadã na escala do país e nacional para as comunidades, independentemente de seu número e localização espacial - permite aos albaneses bloquear as medidas que julguem ameaçadoras [
7]. Uma presença maior dos albaneses em instituições como a polícia, a gestão mista das administrações locais e promoção dos albaneses, notadamente na Universidade de Tetovo, favoreceram um clima de pacificação. Ainda é preciso encontrar trabalho, em sua própria língua ou em outra... Como todas as sociedades confrontadas com as políticas neoliberais, a Macedônia experimenta uma crise social cada vez mais séria e uma grande separação entre as populações e sua representação política. Ali reside a fraqueza dos acordos de Ohrid, a despeito de suas conquistas. A Macedônia segue, neste plano, a regra geral. Combinada com a procura de vínculos confederais ou federais entre vizinhos, a relativização das fronteiras graças ao aumento dos direitos sociais e nacionais no interior de cada Estado foi, nos Bálcãs, uma orientação alternativa - avançada no passado, e ainda atual [8]. Uma política da União Européia baseada nesses princípios poderia favorecê-la. Mas a atual, que impõe cortes de orçamentos no próprio momento de ampliação do bloco é, ao contrário, explosiva.

(Trad.: Elisabete de Almeida)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O saddam dos bálcãs

Revista Isto É Nº 1530 – 27 de janeiro de 1999
I U G O S L Á V I A
O saddam dos bálcãs
As tropas de Slobodan Milosevic cometem novas atrocidades no Kosovo, a Otan ameaça atacar e acordo de paz na região fica mais difícil

EDUARDO FERRAZ

A vida lhe foi cruel. Primeiro, foi seu tio que se suicidou. Depois, ele viu seu pai se matar com um tiro e sua mãe enforcar-se no meio da sala de estar. Ninguém naquela pequena cidade do interior da Sérvia estranharia se ele resolvesse seguir o exemplo da família. Mas, não. Para a infelicidade de seus compatriotas, Slobodan Milosevic quis viver. Hoje, aos 57 anos, ele é presidente do que restou da Iugoslávia e continua a demonstrar uma obsessão em se vingar de sua história. Está agarrado ao poder há 11 anos, época em que, com um poderoso aparato de propaganda, ensinou os sérvios a odiar os vizinhos de outras etnias. Foi o principal mentor da guerra civil na Bósnia, conflito que ressuscitou horrores não vistos na Europa desde Adolf Hitler, como campos de concentração, genocídio e faxina étnica. Agora, Milosevic dá sinais de que quer repetir a dose na província separatista do Kosovo, onde 90% da população é formada por pessoas de origem albanesa e muçulmana.

Desde fevereiro do ano passado, forças de segurança sérvias enfrentam rebeldes do Exército de Libertação do Kosovo (ELK) e, sob esse pretexto, também torturam e matam civis. O terror sérvio provocou um êxodo de mais de 100 mil pessoas. Em outubro, graças à intervenção diplomática ocidental e a ameaça militar da Otan, conseguiu-se estabelecer uma trégua nos combates, para que se tentasse costurar um acordo de paz na região. Cerca de 750 observadores da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) entraram na província para garantir um cessar-fogo e conseguiram, se não eliminar os conflitos, diminuí-los consideravelmente. Nos últimos dias porém, tudo voltou à estaca zero. Na sexta-feira 15, os habitantes da pequena aldeia de Racak, 24 quilômetros ao sul da capital provincial, Pristina, foram alvo do pior massacre de que se tem notícia na região. Segundo os sobreviventes, as forças de segurança sérvias chegaram ao local e separaram 45 pessoas, incluindo velhos, uma mulher, um bebê de 3 meses e um garoto de 12 anos. Em seguida, levaram o grupo para um morro próximo, onde todos foram assassinados, a maioria com tiros à queima-roupa na cabeça. Alguns tinham os olhos retirados da órbita, uma acontecimento comum entre vítimas dos sérvios. Os aldeões restantes, cerca de 60, conseguiram se refugiar numa caverna da montanha. No mesmo mês em que a Europa unifica sua moeda, os habitantes do Kosovo voltam às cavernas porque crêem que ninguém pode ajudá-los.

O chefe da Missão de Verificação, o diplomata americano William Walker, foi veemente na condenação ao ataque, que classificou como crime contra a humanidade. Seria de se esperar que Milosevic ordenasse uma investigação do massacre, com o auxílio dos membros das organizações internacionais. Mas, novamente, Milosevic optou pelo confronto. Decretou a expulsão de Walker, negou a entrada no país de Louise Arbour, procuradora-chefe do Tribunal de Crimes de Guerra das Nações Unidas, e, ainda, manteve a movimentação das forças sérvias na região, num flagrante desafio ao acordo de trégua. Assim, ao mesmo tempo que deixou mais distante a possibilidade de uma solução negociada para o conflito, voltou a brincar de gato e rato com a Otan, que colocou aviões e navios em estado de alerta. Ao final da semana, diante das ameaças de ataques aéreos da Otan e da possibilidade de todos os observadores internacionais deixarem o país, Milosevic voltou atrás na decisão de expulsar Walker. Com avanços e recuos, bem ao estilo do ditador iraquiano Saddam Hussein, o líder sérvio manipula os ocidentais e ganha forças, dentro de casa, para se manter no poder, coisa que se tornou sua especialidade. Continua, desta forma, a ser uma dor de cabeça para europeus e americanos e um fantasma a assombrar seus vizinhos.