quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A explosão

02 de outubro de 1996
Revolta palestina contralinha dura de Israel deixa mais de sessenta mortos
A senhora palestina saiu da mesquita de Al-Aksa, no coração de Jerusalém, na sexta-feira, e parou, assustada com a enorme concentração de policiais israelenses à espera dos fiéis muçulmanos. 'Netanyahu maj’noun!', espantou-se -'Netanyahu está louco!'. No final da semana em que os palestinos se revoltaram contra as repetidas provocações feitas pelo governo linha-dura de Israel e a polícia palestina enfrentou o Exército israelense num confronto sangrento, com mais de sessenta mortos e de 1 000 feridos, não era difícil acreditar, no nível das impressões populares, que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu estava realmente maj’noun.
Movido pela cega obstinação de rever as regras do jogo herdadas do governo anterior, em apenas 100 dias ele implodiu sistematicamente o já complicadíssimo processo de acomodação entre judeus e palestinos, que seus antecessores levaram seis anos para construir. A gota d’água foi a decisão de reabrir sorrateiramente um túnel arqueológico que passa perto das duas mesquitas veneradas pelos muçulmanos, na parte antiga de Jerusalém. Diante da rebelião popular detonada por essa decisão insensata e arrogante, Netanyahu demonstrou o distanciamento da realidade que se espera encontrar em quem mergulhou na condição de maj’noun, mas jamais na de primeiro-ministro de um país à beira de ser engolfado numa situação de guerra.

Pouco-caso - Como se confundisse desejos com realidade, ele lavou as mãos de qualquer responsabilidade e acusou Yasser Arafat, o presidente da Autoridade Palestina, pelo caos nos territórios ocupados por Israel. Netanyahu tentou vender um peixe estragado: tudo não passou de uma maquinação perversa para pressionar Israel a ceder nas negociações de paz (que àquela altura já haviam corrido ralo abaixo). Ele também fez pouco-caso do pedido dos Estados Unidos, o grande patrono, que protege e banca a conta do Estado judeu, em favor de uma solução negociada para a crise.
Aos apelos do resto do mundo, onde se multiplicavam os sinais de alarme - Alemanha, França e Inglaterra fizeram uma declaração conjunta sem precedentes, implorando a pacificação dos ânimos -, Netanyahu respondeu mandando reprimir qualquer manifestação na área das mesquitas em Jerusalém. Recebida com pedradas, a polícia matou três palestinos e feriu mais de cinqüenta. No meio da multidão, o repórter Daniel Blumenthal, colaborador de VEJA, sentiu de perto a impotência das pessoas pegas no fogo cruzado da repressão indiscriminada. 'A polícia bloqueou o portão de Nablus, na muralha norte, e só deixava passar as ambulâncias para buscar os feridos', conta. 'Eram sete. Cada uma delas fez pelo menos dez viagens até o hospital Al-Mukased.' No meio da confusão, um detalhe quase surrealista: um ursinho de pelúcia, jogado no chão que já se cobria de trilhas de sangue.

Brios patrióticos - Netanyahu teimou em abrir a nova passagem do túnel arqueológico - o estopim da revolta palestina -, apesar das advertências do serviço secreto e de seus próprios ministros sobre a inconveniência da medida num momento de tensões à flor da pele. O prefeito de Tel-Aviv, Roni Milo, da ala mais moderada do Likud, o partido que chefia a coalizão de governo, chamou-o de tolo por forçar a barra numa questão irrelevante como essa. Pela ótica da linha dura, medidas mais graves, como a autorização da construção de mais colônias judias nos territórios palestinos, fazem sentido - e, afinal, constavam da plataforma de campanha que elegeu Netanyahu. Absurdo foi insistir na abertura do túnel, que mexe com explosivos sentimentos religiosos e fere fundo os brios patrióticos palestinos. Encurralado pelas sucessivas provocações, Arafat reagiu com a convocação de greves e manifestações nos territórios e acusou Israel de avançar ainda mais a 'judaização de Jerusalém'. O pretexto de que a ampliação do túnel aumentaria o movimento turístico (afetado, na verdade, pelo clima de instabilidade vigente desde a posse do atual governo) pareceu quase macabro diante das conseqüências. 'Não conheço nenhuma mãe disposta a sacrificar seu filho para aumentar o turismo', ironizou o ex-primeiro-ministro Shimon Peres, derrotado por Netanyahu nas últimas eleições. 'Nada de bom pode resultar desse túnel', previu.
O banho de sangue começou de maneira quase habitual. Palestinos fazem manifestações, jogam pedras, tocam fogo em pneus velhos. Policiais e soldados israelenses respondem com balas de borracha e cassetetes (o ministro das Finanças, Mohamed Nashashibi, levou umas pancadas, o elegante Faisal Husseini, representante da OLP em Jerusalém, baixou no hospital). O confronto permanecia dentro do figurino da intifada, a revolta palestina movida a pedradas e encerrada com os acordos de paz, em 1993. Então, a situação fugiu ao padrão. 'Um membro da Força 17 (a tropa de elite de Arafat) viu um civil cair ensangüentado a seus pés', contou Khaled Matur, um estudante palestino ferido a bala no ombro. 'Ele perdeu o controle e abriu fogo. Logo todo mundo, palestinos e israelenses, estava atirando indiscriminadamente.'

'Deus é grande' - Outro policial deu explicação diferente para sua reação: se não atirasse, enquanto sua gente era moída, a fúria da multidão se voltaria contra ele. O tiroteio escalou rapidamente para um confronto generalizado, em todas as regiões árabes, entre as forças policiais palestinas e as tropas de ocupação, num surto de violência sem paralelo nesse conflito, que dura desde 1967. Os feridos nos hospitais eram tantos que pessoas atingidas com menos gravidade, nos braços e nas pernas, esperavam horas por atendimento. Apinhado de gente ansiosa em busca de parentes desaparecidos e jovens enfurecidos, que recebiam as ambulâncias aos gritos de 'Deus é grande', o brado de guerra islâmico, o hospital de Ramallah, cidade vizinha de Jerusalém, revivia o clima dos dias mais violentos da intifada. A realidade, contudo, era bem diferente. A entrada da polícia de Arafat em confronto aberto com o Exército israelense estabeleceu uma nova - e ainda mais brutal - realidade na difícil convivência entre palestinos e israelenses, que até então realizavam patrulhas conjuntas nas áreas autônomas.
Um incidente bizarro na cidade de Nablus ilustra o paradoxo da batalha entre dois signatários de um tratado de paz, mas que não chegam a um acordo de convivência pacífica. Num embate humilhante para o poderoso Exército do Estado judeu, um pelotão inteiro de 42 soldados israelenses viu-se cercado pela multidão de manifestantes e precisou do socorro da polícia palestina para se safar com vida. Os soldados faziam a guarda de uma antiga mesquita, que muitos judeus acreditam ser o túmulo de José, o personagem bíblico. O edifício murado, usado como centro de estudos por judeus religiosos, é o único enclave israelense na cidade sob controle palestino. A tropa enviada para resgatar a guarnição também foi cercada e abandonou seus veículos para se refugiar no prédio, logo invadido e ocupado pela polícia palestina. A televisão mostrou policiais gritando em hebraico 'não tenham medo' para os israelenses cercados. Os palestinos também forneceram água, comida e até telefones celulares para que os soldados pudessem ligar para casa.
No final do dia, a polícia palestina escoltou os soldados feridos até o território israelense e emprestou ambulância para levar os corpos de seis militares mortos. Símbolo da vitória, a bandeira palestina foi hasteada na torre de vigia em lugar da costumeira Estrela de Davi. A gravidade do confronto em Nablus não se mede apenas pelo número de baixas israelenses, mas pelo ataque a um lugar santo judaico. A analogia inevitável é com Hebron, onde 400 colonos, todos fanáticos religiosos, vivem junto a outro santuário, o Túmulo dos Patriarcas, no meio de 120 000 palestinos. Netanyahu diz que não retira as tropas porque ficaria difícil proteger os colonos. O episódio de Nablus demonstra que manter um pequeno enclave numa cidade palestina é um risco ainda maior.

Frente ampla - Na Faixa de Gaza, onde Arafat instalou a sede de seu governo, milhares de palestinos cercaram as colônias de Netzarim e Kfar Darom, duas pequenas povoações isoladas entre 1 milhão de palestinos. Outro enclave minúsculo, Nissanit, no norte da Faixa, precisou ser evacuado. Com a ajuda da polícia, a multidão atacou um pequeno posto de vigilância israelense a menos de 2 quilômetros de Netzarim, na quinta-feira. O Exército israelense decretou estado de emergência nos territórios e, pela primeira vez desde a conquista em 1967, enviou tanques para a Cisjordânia. Um helicóptero equipado com metralhadoras - arma de guerra pesada - chegou a ser usado para atacar franco-atiradores entrincheirados num prédio de apartamentos. Outro metralhou palestinos na cidade de Rafez e acabou matando um tenente egípcio, do lado de lá da fronteira. Por volta do meio-dia de quinta-feira, Arafat ordenou à polícia palestina que só abrisse fogo em autodefesa - as tropas não lhe deram a mínima atenção e continuaram trocando tiros com os israelenses.
Só no dia seguinte a polícia palestina voltou a acatar as ordens de Arafat - talvez por isso mesmo o número de mortos na sexta-feira caiu para sete palestinos e três israelenses. A força policial de 40 000 homens, a maioria ex-guerrilheiros repatriados dois anos atrás, quando a Autonomia foi estabelecida, é a espinha dorsal do poder de Yasser Arafat. Na semana passada, foi praticamente a primeira vez que dispararam em defesa da população palestina - até então, vinham se especializando na repressão interna, exigida por Israel e pelos Estados Unidos para controlar o terrorismo dos fundamentalistas muçulmanos. A ação da polícia, com o conseqüente aumento de vítimas entre os palestinos, reavivou o orgulho nacional e, ironicamente, deu mais algum fôlego a Arafat. A convocação aos protestos de quinta-feira foi feita na base da frente ampla, assinada por todas as vertentes palestinas, desde a Fatah até os radicais do Hamas.

Decepção dos otimistas - Surpreendi-do pela revolta durante uma viagem pela Europa, Netanyahu mostrou a mesma alienação da realidade que se perceberia na entrevista de sexta-feira. 'Não sei por que tanta confusão', espantou-se na Alemanha. Na quinta-feira, alertado sobre a gravidade da situação, voltou às pressas para Israel e se pôs a telefonar para Arafat em busca de um encontro - rejeitado em primeira instância. 'Tudo isso mostra como faltam a Netanyahu habilidade e sabedoria', diz o ex-ministro trabalhista Moshe Shahal. 'Ele não tem a mínima capacidade para ser primeiro-ministro de Israel.'
Quando Netanyahu foi eleito, os otimistas achavam que ele poderia 'ver a luz', como não é incomum acontecer com durões colocados diante das realidades do poder. Se o intransigente Menachem Begin assinou a paz com o Egito, Bibi, moderno, com muitos anos de vida nos Estados Unidos e conhecimento das técnicas de marketing, também poderia render-se à lógica da paz (as alternativas são eliminar os palestinos ou conviver eternamente com a ocupação e o domínio de uma população inimiga). Netanyahu foi uma decepção para os otimistas. Ele abandonou, na prática, o conceito de trocar terra por paz, que norteou a política dos governos trabalhistas e permitiu arrancar dos palestinos um acordo miserável - mas o único que conseguiram. Eleito com a promessa de oferecer 'Paz com segurança', sua intransigência e falta de habilidade conduziram à situação que se via ao fim da semana: Israel não tinha uma coisa nem outra.

'Dinossauro' - Fora das fronteiras imediatamente explosivas do conflito com os palestinos, a situação não é muito melhor. Em apenas três meses, Israel retrocedeu ao isolamento diplomático de duas décadas atrás. Mesmo antes da eclosão da nova fase da revolta palestina, as relações com o Egito iam de mal a pior. Antecipando-se ao julgamento que se tornou corrente na semana passada, o subsecretário do Ministério das Relações Exteriores do Egito, Adel Safti, disse que Netanyahu sofre de um 'medo patológico' em questões de segurança e deveria procurar 'aconselhamento psicológico'. Outro ministro egípcio qualificou-o de 'dinossauro'.
As negociações de paz com a Síria foram não apenas interrompidas como agora ambos os países estão concentrando tropas nas fronteiras. O Catar desistiu de enviar representante para Tel-Aviv. O rei Hassan, do Marrocos, que se entendia bem com Shimon Peres, suspendeu os contatos. Até a Jordânia, paparicada pelos israelenses e interessada em manter um bom relacionamento, cancelou uma visita do príncipe Hassan, irmão do rei Hussein. Também nesse caso o primeiro-ministro israelense não consegue entender por que sua política em relação aos palestinos irrita tanto os vizinhos árabes. Se não é loucura clínica, é um caso extremo de insanidade política. Maj’noun, com certeza.

As portas abertas da guerra
Uma obra feita na calada da noite, sob forte proteção policial, no coração histórico da cidade que dois povos inimigos disputam como sua capital, não poderia mesmo dar certo. O túnel que provocou a explosão de revolta entre os palestinos existe há mais de 2 000 anos na parte antiga de Jerusalém e tem interesse arqueológico. Ao longo de seus 488 metros, há marcas das inúmeras civilizações que já passaram por Jerusalém: um aqueduto construído pelos macabeus há quarenta séculos, uma rua romana, uma pedra do alicerce do Muro das Lamentações, uma piscina bizantina e vestígios da época da dominação árabe e das cruzadas cristãs. O que interessa, no entanto, está acima da superfície: a 400 metros do túnel, erguem-se as magníficas mesquitas de Al-Aksa e de Omar, particularmente veneradas pelos muçulmanos. A mesquita redonda de Omar circunda a rocha bruta de onde, segundo a crença islâmica, o profeta Maomé ascendeu aos céus.
A alegação, feita pelos palestinos, de que a ampliação do túnel abalaria as fundações da mesquita pode parecer paranóia. E é - o mais insano dos governos israelenses não cogitaria cometer tal sacrilégio. Mas até a paranóia tem seu lado compreensível quando se lembra que fanáticos judeus chegaram a planejar um atentado com explosivos para detonar a mesquita inteira, a pretexto de reconstruir em seu lugar o templo judaico destruído pelos romanos. (Os terroristas foram presos antes de levar a conspiração adiante, julgados, condenados e, mais tarde, anistiados.)

Na marra - O argumento do governo israelense para estender o traçado do túnel pareceria até razoável, em tempos mais normais: aumentar o fluxo de turistas. Até agora, os visitantes tinham de entrar e sair da passagem, com cerca de 1 metro de largura, pela única porta, ao lado do Muro das Lamentações. Um segundo ponto de acesso permitiria movimento maior. No ano passado, durante o governo de Yitzhak Rabin, quando as negociações de paz pareciam avançar, representantes palestinos teriam concordado com a abertura do túnel. Em troca, teriam acesso a outro sítio arqueológico subterrâneo, localizado debaixo da esplanada das mesquitas. Rabin foi morto por um fanático judeu, terroristas palestinos tumultuaram o processo de paz, Benjamin Netanyahu acabou eleito com seu discurso de linha dura. Em mais um desafio aos palestinos, resolveu abrir o túnel na marra. Deu no que deu.

Os 100 dias que detonaram a paz
O confronto entre o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e os árabes começou no dia 1 do seu governo. Os incidentes sucederam-se numa escalada, até a grande explosão:
• Logo que assumiu, em junho, Netanyahu exigiu mais garantias para os judeus fanáticos que vivem num bunker em Hebron, cidade que deveria passar à administração palestina. As tropas israelenses continuam lá, no desafio mais flagrante aos acordos de paz.
• A angústia foi crescendo com a revogação da proibição de novas colônias na Cisjordânia ocupada. Aumentou o ritmo de construção de estradas exclusivas para os colonos judeus. Dezenas de milhares de palestinos continuaram proibidos de entrar em Israel para trabalhar.
• Só três meses depois da posse Netanyahu encontrou-se com o líder palestino Yasser Arafat. Um encontro gelado. Depois da reunião, o primeiro-ministro disse que os palestinos jamais teriam um Estado próprio.
• O anúncio do plano de construir 3 800 casas para colonos na Cisjordânia levou Arafat a convocar greve geral e manifestações. Israel fechou o acesso ao local do protesto.
• Israel pôs abaixo um centro comunitário palestino que, segundo alegou, funcionava sem licença, e uma 'confusão da segurança' forçou o helicóptero de Arafat a vagar por 45 minutos antes de conseguir pousar na Cisjordânia. Aumentou o número de soldados israelenses nas ruas de Jerusalém.
• Do lado de fora, os países árabes acompanharam o começo de governo com ansiedade crescente. A Síria grudou um batalhão nas colinas de Golã, que Israel ocupou em 1967 e Netanyahu excluiu totalmente um eventual acordo de paz. No Egito, o tom das críticas atingiu níveis sem precedentes.


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