quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Um aperto de mãos, uma nova história


22 de setembro de 1993

O acordo selado por Rabin e Arafat traz a esperança de futuro de paz no Oriente Médio

Negócio fechado, assinado e selado. Selado com aperto de mãos. De um lado, Yitzhak "Quebra-Ossos" Rabin. Do outro, Yasser "Terrorista" Arafat. Nunca o significado desse gesto, surgido do costume entre os cavaleiros medievais de estender vazia a mão direita, a da espada, para dar ao interlocutor a garantia de intenções pacíficas, esteve tão perto de suas origens. Debaixo de um céu azul, azul, e um sol de rachar, no gramado da Casa Branca, o aperto de mãos entre dois velhos guerreiros, no sentido literal da palavra, deu vida ao acordo de paz entre israelenses e palestinos. Uma nova história, repleta de problemas cabeludos mas sobretudo de comoventes esperanças, começa no Oriente Médio.

Nestes tempos de prodigiosas reviravoltas, qualificar a cena em Washington como um acontecimento histórico chega a ser banal. Mas não tem nada de exagerado. O encontro é histórico por aproximar dois inimigos encarniçados e também por sua capacidade de modificar, de uma hora para outra, a visão que o mundo tem de problemas aparentemente insolúveis. Como disse o escritor Amos Oz, se árabes e judeus são capazes de conviver em paz, não há, em nosso planeta, adversários tão endurecidos que não possam fazer o mesmo.

Quem conhece o primeiro-ministro de Israel não duvida que ele nutre pelo líder palestino a mais absoluta antipatia. É verdade que os dois só se conheceram pessoalmente minutos antes da cerimônia. Levados para o Salão Azul da Casa Branca para uma rodada de cafezinhos e suco de laranja, os dois ignoraram-se solenemente, apesar de separados apenas pela curta distância de 5 metros. Foi no atropelo da saída dos diplomatas da sala, chamados para um cumprimento ao anfitrião Bill Clinton, que Rabin e Arafat viram-se cara a cara pela primeira vez. "O senhor sabe, nós temos um monte de trabalho a fazer", disse Rabin, com sua voz monocordicamente sombria. "Eu sei e estou preparado para fazer minha parte", respondeu o palestino.

PODER DOS SÍMBOLOS - No palanque, o contraste entre os dois era gritante. Rabin parecia um condenado que sobe ao patíbulo, tenso, duro, sem saber onde enfiar os papéis com seu discurso. Populista de longa data, habituado ao calor das multidões, Arafat ganhou em matéria de linguagem corporal. O estadista Rabin ressurgiu quando sacou do bolso o discurso, uma peça eloqüente que lembrou aos ouvintes como, depois de 100 anos de hostilidades, ambos os povos estavam exaustos.

O momento decisivo aconteceu por iniciativa de Clinton, outro populista da cepa desenvolvida no sul dos Estados Unidos, à vontade com abraços e tapinhas nas costas. Primeiro, com o braço esquerdo, tocou nas costas de Arafat. Com o direito, conduziu Rabin ao gesto mágico da reconciliação pública. Arafat estendeu a mão, Rabin hesitou, por uma fração de segundo, antes de apertá-la, com um esgar que passou por sorriso. O poder dos símbolos não deve ser desprezado. O acordo, negociado em segredo durante meses, já estava anunciado. Uma semana antes, os dois já haviam dado o passo mais importante - o reconhecimento mútuo. Sem o aperto de mãos, ao qual Rabin só aquiesceu implicitamente depois de um telefonema de Clinton convidando-o a ir a Washington, não teria a mesma graça.

ÓTIMO NEGÓCIO - A paz dos bravos, segundo a definição de Arafat, precisava do gesto simbólico de reconciliação entre dois homens que dedicaram boa parte de suas vidas a tentar se destruir mutuamente, homens cujas trajetórias individuais personificam o conflito entre seus povos. O carrancudo Rabin combateu na guerra de 1948 e, como chefe do estado-maior na Guerra dos Seis Dias, conquistou os territórios que agora está disposto a devolver em troca da paz. Nem o mais benevolente biógrafo o descreveria como um pacifista. Impiedoso, prometeu "quebrar os ossos" dos palestinos rebelados nos territórios ocupados e fez o que pôde para cumprir a promessa. É esse o currículo ideal para quem quer firmar a paz sem ser qualificado de frouxo por seus compatriotas - mesmo que seu interlocutor seja Arafat, o arquiterrorista dos pesadelos israelenses, o homem que um dos seus antecessores, o falecido primeiro-ministro Menachem Begin, se recusava a chamar pelo nome, usando apenas a expressão "animal de duas patas".

Pois foi o "terrorista" e "animal", segundo a demonização israelense, que cedeu, cedeu, cedeu, até conseguir um acordo. Partiu dele a proposta de iniciar a retirada israelense por Jericó e por Gaza, deixando o restante - um imbróglio fenomenal - para discutir mais tarde. Do ponto de vista israelense, quando se desconta o pavor patológico face aos inimigos árabes, é um ótimo negócio: o acordo deixa intactas as 144 colônias judaicas nos territórios, preserva o controle das fronteiras, contorna o espinhoso assunto de Jerusalém, cuja parte leste foi anexada em 1967, e não assume nenhum compromisso, ao menos por enquanto, com a criação de um Estado palestino. Os palestinos ficam com a autonomia limitada e o poder de polícia, ou seja, vão reprimir seus compatriotas que não engolirem a pílula. Se qualquer coisa, ao longo do processo de cinco anos, fracassar, Israel pode ocupar a Cisjordânia inteira outra vez - uma hipótese na qual, a essa altura, é melhor nem pensar.

Do ponto de vista dos palestinos, o acordo ainda está longe de acenar com seu grande sonho - a criação de um Estado próprio -, mas o carnaval com que foi recebido é um sinal de como um povo oprimido comemora quando dá um passo rumo à realização de suas aspirações nacionais. A realidade é dura, e a maioria dos palestinos dos territórios ocupados, ao contrário de muitos de seus compatriotas refugiados em outros países, a reconhece: eles perderam, os israelenses ganharam. Poderiam continuar a recusar qualquer entendimento, como vinham fazendo desde antes da criação do Estado de Israel, porque isso implicaria a partilha de sua terra com os judeus. Poderiam continuar a jogar pedras, a resistir na intifada, a exigir dos irmãos árabes que mantivessem o estado de beligerância. Israel, naturalmente, continuaria a lhes quebrar ossos. Preferiram a opção lenta, restrita da "entidade palestina", como vem sendo chamada, numa suprema ironia - durante décadas, os árabes é que chamavam Israel de "entidade sionista".

GORBACHEVEZAÇÃO - Para dar certo, o país em gestação só precisa agora de duas coisas. A primeira é que a OLP mostre na prática que é capaz de segurar seus próprios radicais e os muçulmanos fundamentalistas inconformados com o acordo. O outro pré-requisito se resume a uma palavra: dinheiro. Na terça-feira, Arafat tomou o café da manhã com executivos do Banco Mundial para falar de negócios. "Arafat nos pediu ajuda com urgência", conta o brasileiro Caio Kochweser, vice-diretor da instituição. "Ele insistiu que não quer se tornar outro Gorbachev, que recebeu muitas promessas de ajuda que nunca se materializaram."

Não se sabe de onde o dinheiro vai sair, mas investir na estabilização do Oriente Médio é um bom negócio também para os ricos. Os primeiros dividendos já estão aparecendo. Na viagem de volta, Rabin fez escala no Marrocos, onde foi recebido pelo rei Hassan II. No dia seguinte, assinou com a Jordânia um protocolo de intenções para um acordo de paz. "Vamos fazer a paz com todos os 24 Estados árabes", entusiasma-se Rabin. Não é fácil. Mas, ao se dirigir às centenas de adolescentes israelenses e palestinos levados ao jardim da Casa Branca, vestindo camisetas com a inscrição "Sementes para a Paz", o presidente Clinton lembrou que a paz dos bravos, a "corajosa aposta no futuro" feita por seus líderes, oferecia-lhes a chance pela qual vale a pena lutar, ceder, pagar e arriscar: "O milagre silencioso de uma vida normal".

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