quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A marcha da insensatez


VEJA Edição 1 746 - 10 de abril de 2002
Especial A Guerra no Oriente Médio

GUERRA TOTAL
Soldados israelenses ocupam Belém (primeira foto ), e palestino encapuzado resiste em Nablus: paz soterrada


Israel é uma ilha menor que o Estado de Sergipe em que 5 milhões de judeus estão cercados por um mar de 344 milhões de adversários, espalhados pelos países islâmicos do Oriente Médio e do norte da África. O Estado judeu travou e venceu cinco guerras de grande escala com os vizinhos. A sensação de viver entre inimigos gerou nos israelenses o condicionamento de reagir a qualquer ameaça de agressão com brutalidade dobrada. É o que está acontecendo agora, num dos mais sinistros desdobramentos de um conflito que começou há mais de meio século, desde a implantação do Estado de Israel na região. A ofensiva militar dos israelenses contra as áreas habitadas pelos palestinos nas últimas semanas chocou o mundo pela envergadura da operação e também pelos ataques contra a população civil. A mobilização de tropas israelenses, a maior em duas décadas, veio como resposta a uma campanha de atentados contra civis israelenses, com a participação de homens e mulheres-bomba, uma entidade típica dessa guerra de pólvora e de ódio. Como a maioria das guerras, essa de agora é ditada pela insensatez. Palestinos e judeus chegaram a um ponto em que nenhum dos lados quer ceder e ambos estão dispostos a ir até o fim. Essa determinação bélica tem contornos de suicídio e coloca riscos para uma região, o Oriente Médio, que é o mais sensível barril de instabilidades do planeta.
Um dos mais graves aspectos desse conflito é misturar num só aquilo que o escritor israelense Amós Oz diz que são, na verdade, dois conflitos separados. Pacifista histórico e inimigo declarado do nacionalismo exacerbado do primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, Oz escreveu, num artigo publicado no Brasil pelo jornal Folha de S.Paulo, que é preciso distinguir entre as duas guerras. Uma é a guerra legítima do povo palestino para libertar-se da ocupação israelense e pelo direito a ter um Estado independente. A segunda guerra é travada pelo Islã fanático, desde o Irã até a Faixa de Gaza, com o objetivo de destruir Israel e varrer para o mar até o último dos judeus que lá vivem. Há judeus – como Ariel Sharon – que defendem a ocupação permanente da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, territórios capturados pelos israelenses na guerra de 1967. O argumento é o de que o país é alvo de uma guerra de extermínio desde 1948, ano de fundação do Estado de Israel, e está no direito de oprimir os palestinos em nome da própria sobrevivência. Do lado árabe, o argumento simplista é o de que o direito de resistir à ocupação inclui a licença para matar todos os israelenses. Amós Oz propõe que Israel recue dos territórios ocupados e trace suas fronteiras com base na demografia e no imperativo de não oprimir outro povo. Se ainda assim o fanatismo continuar sua campanha de assassinatos de civis israelenses, pelo menos Israel terá só uma guerra a travar, e não duas. Com a vantagem de que seria uma guerra justa pela terra, liberdade e vida de seu povo.


CIDADE SITIADA
Policial israelense reprime pacifistas que tentavam levar ajuda humanitária a Ramallah: ruas e carros arrasados
O que o mundo quer ver é judeus e palestinos vivendo em harmonia em dois Estados vizinhos. A realidade não é essa porque a dinâmica do conflito colocou o poder nas mãos de gente por demais envolvida na lógica perversa das vinganças sangrentas. Até a tarde de sexta-feira passada, os tanques israelenses já tinham tomado sete das oito principais cidades autônomas palestinas. A exceção é Jericó. Dezenas de civis foram mortos, e mais de 1.000 homens, presos. O cenário nas cidades ocupadas é de devastação. Carros, casas e ruas foram arruinados por bombardeio e pelo tráfego de blindados de 60 toneladas. Confinado a duas salas no único prédio inteiro no complexo de edifícios que lhe serve de quartel-general, na cidade de Ramallah, Yasser Arafat, líder daquilo que mais se aproxima de um governo palestino, teve o primeiro momento de alívio na sexta-feira. Foi quando recebeu a visita do americano Anthony Zinni, enviado pelo presidente George W. Bush para negociar um cessar-fogo. Nesta semana chega à região o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, com a missão de ressuscitar as negociações de paz. Na quinta-feira, Washington exigiu a retirada israelense das áreas palestinas. Foi a primeira vez que os EUA se manifestaram de forma tão clara sobre o assunto. Até então, os americanos vinham se omitindo e Sharon aproveitava a hesitação de Washington para ir em frente com seus ataques maciços. De acordo com jornais de Tel-Aviv, Sharon finalmente deu ordens para encerrar as operações militares neste fim de semana.
Há nove anos, quando os acordos de paz entre israelenses e palestinos foram assinados, Arafat recebeu o controle administrativo das maiores áreas urbanas da Cisjordânia e de Gaza e se comprometeu a trabalhar para evitar ataques a Israel. Não cumpriu a promessa. Em parte, porque sua polícia não tem condições de impedir cada ataque suicida. Mas também porque não quis. Os israelenses também deram sua contribuição ao conflito. Israel relutou em cumprir as retiradas previstas e continuou a instalar colônias judaicas nas terras em que os palestinos querem construir seu Estado.


CUIDADOS EXTREMOS
Palestino levanta o casaco para comprovar que não está armado, em Ramallah: medo do homem-bomba
O primeiro-ministro de Israel foi à guerra sob o argumento oficial de que precisa destruir a rede do terrorismo árabe na região. Sua intenção real é enterrar de vez os acordos de paz de 1993, aos quais sempre se opôs, e destruir a infra-estrutura penosamente criada pelos palestinos como preparativo para um Estado independente. Antes de atacar, Sharon prometeu aos americanos não tocar em Arafat. No meio da semana, mudou de idéia e se pôs a falar em expulsá-lo para o exílio. É quase certo que fracassará em todos os seus objetivos. O terrorismo palestino se alimenta do desespero de uma população oprimida. Tudo de que precisa para despachar um terrorista suicida são homens e mulheres cheios de ódio e dispostos a morrer e matar em nome de Alá e da causa palestina. Sharon também tentou isolar Arafat. Sem luz e com poucos mantimentos, durante uma semana o chefe da Autoridade Palestina esteve ligado ao mundo apenas por telefones celulares. Nesse período, seu prestígio aumentou entre seu próprio povo e ele acabou recebendo a solidariedade da maioria dos países, sobretudo os europeus. O governo americano, que chegou a dizer que Arafat era pessoalmente responsável pela onda de atentados suicidas, admitiu que ele é o líder legítimo dos palestinos e que o "caminho da paz passa por Arafat".
A Palestina vive um conflito que se arrasta desde o início do século XX, quando as primeiras levas de judeus sionistas desembarcaram com planos de criar um Estado judaico na região. Em 1947, a ONU votou pela partilha da área em dois Estados e, no ano seguinte, os judeus criaram Israel. Perto de 800.000 árabes deixaram o território do novo Estado ou foram expulsos e hoje formam um contingente de 3,6 milhões de refugiados que vivem em vários países. Foi nesse cenário que surgiu Arafat. Nos anos 70, ele colocou a questão palestina no centro das atenções mundiais com uma sangrenta campanha terrorista contra Israel. Até meados dos anos 80, o nacionalismo palestino tinha um objetivo claro: destruir Israel. Nos anos 90, reduziu a ambição a uma meta mais realista: a criação de um Estado soberano na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, que, juntas, têm uma área um pouco maior que a do Distrito Federal. A invasão israelense iniciada na sexta-feira 29 ocorreu um dia depois de 22 países árabes endossarem uma proposta de paz do príncipe coroado da Arábia Saudita, Abdullah, que, pela primeira vez na história, ofereceu a Israel relações normais com todos os Estados árabes. Esse desprezo de Sharon por uma oferta de paz não significa que a guerra continuará indefinidamente até alguém esmagar o último sobrevivente do outro lado. Apesar da impressão que se tem de que a situação no Oriente Médio sempre tende a piorar, isso não é verdade em todos os casos. A paz entre Israel e o Egito foi assinada há 24 anos e persiste, apesar de todas as dificuldades que apareceram desde então. Não é por desígnio divino que os dois povos se matam. Quando querem, fazem a paz.

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